#38 – Os órfãos da esquerda fóssil, os geopolíticos renegados da luta social
Este boletim tem sido dedicado especialmente, nas últimas semanas, à questão maior do neofascismo. Isto tem impedido a abordagem de outros assuntos. Hoje, vi-me defrontado com circunstâncias fortuitas que me obrigam a deixar escrita alguma coisa que sirva de fundamento e referência a uma discussão a que devo corresponder, noutro local. Fica isto hoje como número excecional deste boletim, fora do calendário habitual.
Introduzindo
Defronto-me – no seio do meu lugar de esquerda, de lutador de sempre por um projeto transformador radical da sociedade – com uma multiplicidade de adversários. O principal, neste momento, é, o neofascismo a ele estou a dedicar desde há semanas, o essencial da minha reflexão e escrita de luta. Ao mesmo tempo, não posso deixar sem combate inimigos secundários que também desafiam as minhas capacidades. Preocupam-me principalmente, entre esses, os que posso chamar de “inimigos internos”, aqueles que, ate porventura bem intencionados são perigosos porque atuam insidiosamente, no nosso próprio terreno.
Um, a que tenho dado combate pouco acompanhado, é o ultraidentitarismo, vulgo “wokismo”. Não tenho prestado tanta atenção a outro o desvio pseudo-esquerdista dos geopolíticos parafascistas.
Refleti bem no termo. Não os acuso de alinhamento consciente com o neofascismo, mas, objetivamente, fazem-lhe o jogo. Os ultraidentitaristas fazem-no por fornecerem argumentos, estes por apoiarem objetivamente o campo neofascista, com argumentos “intelectuais” ditos de esquerda.
Desde ontem, vi-me embrulhado numa discussão viciosa de Facebook. Cheguei à conclusão de que não devia entrar no jogo e que se justificava um texto sério sobre o assunto. Como não quero quebrar a sequência lógica da série “O regresso da besta” no Por baixo da Espuma, publico extra-rotina este número exclusivamente dedicado ao parafascismo de esquerda.
OS ÓRFÃOS DA ESQUERDA FÓSSIL
Desde há décadas que vem a crescer uma conjuntura que tem debilitado a esquerda à esquerda, o movimento dos trabalhadores e, em geral, o movimento popular. Depois dos anos de ouro das conquistas do pós-guerra e do prestígio do movimento comunista granjeado pelo seu papel na resistência ao nazifascismo, assistiu-ser a uma convergência dramática para o projeto transformador, chamemos-lhe socialismo ou o que preferirem: i. a implosão do mundo de influência soviética; ii. a emergência do neoliberalismo, a par de um recrudescimento da reação ideológica e cultural de que foram exemplos, entre outros, o pós-modernismo e o movimento retrógrado do catolicismo personificado em João Paulo II; iii. a traição da social-democracia: iv. mais tarde, a ascensão meteórica do neofascismo.
É óbvio que estes são os principais inimigos, mas não se pode menosprezar o efeito desgastante de um “inimigo interno”, que vem do oportunismo ou do esquerdismo de franjas espúrias e inconsequentes da esquerda. Como exemplo hoje mais notório, tenho combatido o ultraidentitarismo, vulgo “wokismo”, que faz o jogo do adversário, como sempre aconteceu com essas correntes marginais ao núcleo historicamente determinante do movimento transformador. Mas também há outra corrente, com menor impacto mas não menos deletéria, que é a dos dogmáticos do saudosismo soviético (o quer é muito diferente da posição aberta de comunistas marxistas não alinhados com o “marxismo-leninismo” canónico, como eu), até com laivos de saudosismo do estalinismo. Associam isto ao geopoliticismo exacerbado, com recusa do elemento social revolucionário, e são hoje o tema deste meu escrito.
Como em todas as épocas de crise de qualquer movimento político ou social, há sempre quem não aguente resistir, manter a chama, “hold the fort!” (voltemos a ouvir Pete Seeger), prosseguir a utopia prática, a “fantasia concreta” (Gramsci). Alguns, sem pudor, renegam imediatamente os ideais e passam-se com armas e bagagens para paragens mais ou menos escandalosamente distantes. Outros, frequentemente com justos pergaminhos de vida de luta, nomeadamente no tempo do salazar-fascismo ou de empenhamento no processo revolucionário de Abril, derivaram para posições esquerdistas (no sentido clássico, leninsta), dogmáticas e intelectualmente redutoras.
Este fenómeno não tem tido reflexos na ação política, porque são pessoas que perderam a motivação para a ação e privilegiam a escrita confortável de clube. No entanto, mói, e não só cá. O fenómeno tem-se manifestado por toda a Europa e mereceu, por exemplo na Espanha, duras críticas na imprensa de esquerda, que para eles retomou a velha designação pejorativa (e provavelmente injusta) de “rojopardos”, os vermelhos-castanhos. Adiante se verá que não é designação desacertada de todo. Prefiro chamar-lhes, menos virulentamente, os geopolíticos, já veremos porquê.
Apareceram principalmente depois da eclosão da guerra da Ucrânia. As guerras geram sempre atitudes clubísticas, polarizadas em extremo, de preto ou branco, de intolerância, de esclerose mental, mesmo entre gente com notáveis capacidades intelectuais. Se é inegável que isto originou um invencível movimento de arregimentação propagandística por parte da comunicação social “mainstream”, seria infantil não pensar que o outro lado dispõe dos mesmos meios de manipulação da opinião pública e que mobiliza um exército de “idiotas úteis”. Não vou fazer o processo de intenção de pensar que são agentes conscientes do Kremlin, mas eles não fazem o mesmo quando frequentemente acusam os seus adversários de serem agentes da NATO ou da CIA? Agentes de facto ou não, o que não deixam de ser é instrumentos da propaganda de um lado da guerra híbrida.
(Desculpem uma nota pessoal Até ao fim dos anos 70, fui militante do PCP e, nos últimos anos desse tempo, atuei numa área sensível, certamente apetecível a serviços secretos. Nunca tive qualquer razão para suspeitar de influências externas ilegítimas no PCP, ppr parte de serviços secretos estrangeiros mas, por precaução de mulher de César, sempre recusei tarefas que poderiam levantar tal suspeita. Até os folhetos da Novosti iam para o lixo, sem distribuição pela minha parte.)
Comecemos então por identificar os traços marcantes deste grupo:
desvalorização da ação social revolucionária, do trabalho de massas, da dinâmica social de classe, com privilégio da perspetiva geopolítica;
obliteração da noção de sistema sócio-económico, omissão sistemática da centralidade do capitalismo e da antinomia capital-trabalho ou capitalismo-socialismo, em favor de uma dualidade superestrutural ocidente-“sul global”, esquecendo que esse sul global, a começar pela Rússia, é essencialmente capitalista e mesmo manifestação do mais selvagem capitalismo – faça-se justiça ao PCP, que enfatiza sempre que a Rússia está nos antípodas do seu modelo ideal de sociedade;
a tese de que a esquerda (política, porque só sabem ver esta dimensão) se esgotou e que o fim do “sistema” (qual?) já não virá da luta popular e dos trabalhadores – na sua versão atual de nova classe trabalhadora, alargada –, mas sim da vitória, mesmo militar, do polo alternativo ao Ocidente, seja lá o que isto for;
a perversão da herança intelctual-política dos clássicos, desde Maquiavel (nunca leram o “Moderníssimo Príncipe”, de Gramsci, porque, mesmo inteligentes, são sobranceiramente incultos da teoria e nunca assimilaram minimamente o marxismo e a dialética, mas também a isto ninguém é obrigado, desde que não o invoquem). Adotam amoralmente o princípio dito de “real politik” de que “os inimigos do meu inimigo meus amigos são”;
decorrentemente, a simpatia para com tudo o que se oponha ao imperialismo americano – que, evidentemente, também eu condeno mas sem escamotear outros imperialismos – mesmo que esses oponentes sejam tudo menos recomendáveis como amigos, esquecendo a posição moral – volto ao meu padroeiro Gramsci – que deixarei como princípio num parágrafo a seguir;
esta simpatia é expressa sistematicamente em relação a Trump e aos variados líderes europeus do neofascismo. Como “justificação”, dizem que o neofascismo não é hoe um inimigo importante, comparado com Biden, Kamala Harris, Ursula von der Leyen e os outros belicistas, que evidentemente também não estão no meu catálogo de simpatias políticas;
faça-se-lhes justiça de que não alinham no apoio a Israel, mas isto é, quanto a Trump, o que lhes fará que “o peixe morre pela boca”, como já se está a ver e, que, como caso concreto, suscita esta minha nota.
Quanto ao tal ensinamento de Gramsci, transcrevo do final do meu livro Utopia Hoje, pág. 445: “A filosofia da práxis tem sempre presente que a ética e a política não são opostas. Pelo contrário, uma é a “ciência” da moral, que se estende até à política se esta for, como deve ser, a ética do coletivo. Como segundo grande inspirador de tudo o que aqui deixo neste livro, a seguir a Marx, volto a referir Gramsci, que dizia que era preciso lutar pela realização de uma ideia que não se limita a uma construção especulativa; que é, pelo contrário, um “princípio ético-jurídico”, o princípio da sociedade emancipada. Esse projeto é também um projeto de filosofia moral.
Esta é a “superioridade” dos verdadeiros pensadores progressistas, desde os iluministas até aos marxistas genuínos. Aqueles que hoje constatam com tristeza a decadência da nossa civilização ocidental, mas sem renegarem as suas conquistas e desejando que a renovação da água do banho não leve o bebé com ela.
Quem são estes pseudorrevolucionários?
Nunca ninguém me acusará de falta de coragem, de não chamar os bois pelos nomes e vou fazê-lo aqui. Muitos sabem que, ao longo dos últimos anos, deixei o essencial dessas críticas como comentários públicos numa página do Facebook de uma pessoa influente que congrega o essencial das posições deste grupo. A minha crítica foi sempre frontal, mas tenho evitado transpô-la para outros escritos, como tenho de fazer agora, para não limitar o contraditório.
É essencialmente um grupo de Facebook, sem outra expressão que não seja esse exercício diletante. Ninguém os vê na ação política prática, não expõem as suas ideias em revistas respeitáveis ou em fóruns que, apesar de tudo, vão decorrendo – por exemplo, o importante Congresso do 50º aniversário do 25 de Abril – nem sequer os vejo na rua, nas grandes manifestações. O seu terreno é o Facebook e merecem-no.
Como acontece nas redes, formam uma bolha em expansão – que, como todas as bolhas, espero que rebente. O seu mentor é José Manuel Correia Pinto (JMCP), seguido por uma corte geralmente embevecida de seguidores menores, aqueles a quem ele diz mata e eles respondem esfola – sem prejuízo de alguns com bom nível mas com limitações que não sei bem entender.
Fora dessa corte, já poucos o conhecerão. Foi um homem notável, um combatente respeitado do antifascismo, demitido de assistente da U. Coimbra em 1969. Como oficial miliciano da Reserva Naval, participou no movimento militar da Guiné que deu um contributo inestimável para o 25 de Abril. Foi chefe de gabinete de Vasco Gonçalves e depois secretário de Estado no V Governo, creio que da Presidência, no coração do processo. Na altura da grande cisão do PCP, a seguir ao golpe de verão de Moscovo em 1990, foi eleito presidente do efémero INES, que pretendia congregar os comunistas dissidentes (julgo que na qualidade de independente, porque creio que nunca foi membro do PCP). Desde então, apagou-se politicamente, a não ser na escrita internética, primeiro no seu notável blogue Politeia, depois na sua muito menos notável página do Facebook, onde nunca quis ou não soube combater o primarismo e reducionismo de escrita dessa plataforma – e repetidamente o alertei para isso, como amigo e leitor interessado,.
Sinceramente, é com muita pena que o critico. Foi (é?) meu amigo dileto, daqueles excecionais que tenho o gosto e a obrigação de trazer para jantares na minha casa. Quando comecei a ver a sua – para mim – degradação, tentei sempre desculpá-lo. Repetidamente, após algum atrito no FB, telefonava-lhe e tínhamos longas conversas em que ele amenizava a aspereza com que me retorquia em público, coisa do seu feitio temperamental, e continuávamos amigos. Ultimamente, até isto acabou e receio que já não consiga ir buscar remédio à amizade, porque há limites. Não vejo como pode haver amizade com insultos, deturpação de opiniões, processos de intenção. É certo que a idade não perdoa, que ele já está nos 80, mas também eu e maldito seja o dia em que eu tenha de me desculpar com as fraquezas da idade.
Como disse, JMCP é/foi dono de uma inteligência brilhante, mas com algumas características negativas que ele soube controlar eficazmente enquanto podia e que receio que hoje o ultrapassem. É um minhoto com tendência atávica um pouco caceteira, que tradicionalmente tanto dá para o miguelismo como para o dogmatismo de esquerda.
É arrebatado, com tendência para o fanatismo, intolerante e extremamente convencido das suas capacidades de análise das situações, o que o leva agora a privilegiar as elucubrações intelectuais da geopolítica, em que se deleita. Tem uma tendência eclética para o pilha-apanha de factos por vezes incongruentes, para o “cherry picking”, com grande capacidade para as construções mentais inteligentes e brilhantes de jogar com os dados, com raciocínios formais brilhantes mas superficiais, que resultam como “sound bites”. É curioso que isto se liga, com lógica psicológica, com outra sua paixão manifesta na rede, que não partilho, a dicussão futebolística, outra área favorecedora do simplismo de visão. Não é caso único: Ventura e o seu trauliteirismo não vêm do debate futebolístico?
Não admira que tenha tantos seguidores. Os tempos são de Savonarolas, num novo milenarismo que nos chega com duas décadas e meia de atraso. Mas também são tempos de desafio à lucidez, à coerência. Mehr licht!
O caso JMCP de hoje
Há meses que me transferi do meio inquinado do FB para esta escrita do Substack e raramente vejo o que vai por esse clube dos órfãos dos “tempos felizes” da bipolaridade pseudotranquila, de um mundo do esplendor soviético – é significativo que a sua imagem de fundo do FB seja a de uma estação monumental estalinista do metro de Moscovo.
Já tinha esquecido a sua tese essencial, escrita primariamente no FB mas mais elaboradamente em mensagens privadas para mim ou em conversas pessoais.
“A esquerda morreu, já não há lugar para a luta social. O seu papel foi destruído pelo inimigo principal, o Ocidente do imperialismo americano, da Europa submissa (é verdade!), da mediocridade da Úrsula, Borrell, Costa e quejandos (sempre adjetivados com insultos que agora não reproduzo, como se o insulto acrescentasse aos argumentos). Quantas vezes lhe disse por telefone, “Zé, a tua tendência para a adjetivação reles prejudica-te!”. Comparado com esse inimigo principal, o neofascismo é para ele menor, um tigre de papel.
“A destruição do sistema (que sistema? O capitalismo?) só virá da vitória no campo geopolítico de uma potência emergente alternativa, se necessário por vitória numa guerra. Subentendido, essa potência é a Rússia.”
Esta posição agudizou.-se com Trump, desde a primeira eleição. Lembro-me de um almoço, em 2016, com um amigo comum, em que com o seu arrebatamento exaltado que por vezes nos deixa ficar a pensar que julga que só ele pensa bem e que os outros são pobres invisuais de mente, que Trump era a salvação do mundo, um homem providencial a apoiar porque ia destruir o sistema americano. Desde aí o seu trumpismo afetivo, que só tem meças com a sua admiração por homens fortes como Putin, só se exacerbou. Alinhou em todas as teorias de conspiração de Trump em relação à COVID, por mais que lhe tenha tentado fornecer dados científicos, como virologista credenciado. Depois, contra toda a evidência, apoiou convictamente a tese trumpiana da vitória em 2020 e da fraude eleitoral. Não teve uma palavra para condenar a ação terrorista do 6 de janeiro. E depois da reeleição nem uma palavra sobre a política neofascista em relação às purgas do DOGE, à humilhação dos imigrantes, à repressão dos intelectuais e das universidades, ao controlo dos media e das empresas de advogados (a sua área profissional), ao nepotismo e ao enriquecimento pessoal pelo cargo, etc.. Tudo são coisas que só dizem respeito aos americanos, como se Trump não fosse o alimento de todo o neofascismo mundial.
Ao mesmo tempo, a glorificação de Putin e a adoção das suas teses anti-históricas sobre a grande nação russa alargada. Nem sequer vai ler coisas elementares na Wikipedia?
Já tinha esquecido tudo isto ate à leitura de um “post” sobre a nova guerra contra o Irão. Eu bem tinha dito há já bastante tempo que estes geoestrategas, trumpistas e putinistas, iriam morrer pela boca com o problema de Israel, enquanto não explodir a contradição evidente entre Trump e Putin.
Diga-se em justiça, repito, que eles têm uma posição inequívoca de condenação de Israel. Mas enquanto foi Gaza, o namoro Trump-Bibi foi escamoteado, e nem uma palavra sobre o inefável projeto da Riviera do Médio Oriente. Não estou a desvirtuar, pesquisem a sua página do FB.
Agora fia mais fino, porque se entrou em plena área da geopolítica com o ataque ao Irão, um dos símbolos máximos do Sul Global. Com toda a autoridade de quem sempre criticou Trump…, JMCP insurge-se e considera que é o fim de Trump, “Trump deixou hoje claro perante o mundo que não passa de um palhaço nas mãos do sionismo internacional ao serviço do qual actua, mesmo contra os interesses americanos.”
Até concordo, evidentemente, como muita gente que fez “like” a este “post”. Noto é que mesmo em relação ao antes admirável Trump ele não resiste à adjetivação futebolística. Palhaço era coisa que ele reservava para Zelensky, a par da burra da Ursula.
Teve comentadores que provavelmente não se lembram das suas posições anteriores. “Um atrasado mental não sabe nada só diz desparates [sic] seja o fim dele”. E outros que acham que isto é fora da lógica: “Os sionistas, nomeadamente os poderosos sionistas americanos, capturaram Trump. E nada pode deter estes criminosos.” Coitado de Trump, um pobre tonto que se deixou ir pelos seus financiadores sionistas! E também quem ache que Trump não podia ter atacado “uma das mais antigas civilizações do mundo ainda tem espaço para lá os enterrar”. É verdade, uma civilização histórica, mas hoje um regime teocrático, opressivo, representativo do pior que tem o islamismo, na sua pior mistura de iluminação teológica na linha monoteísta e de reacionarismo historicamente datado. Mais um exemplo de comparação – viva o relativismo cultural – com a decadência da civilização das luzes! Se são cinéfilos, não têm visto os excelentes filmes iranianos de protesto e resistência dos últimos anos?
Comentando
Este foi o comentário que deixei no “post”:
“Estou abismado. "M'espanto às vezes, outras m'avergonho", porque ainda vou sentindo vergonha por males alheios, especialmente quando são de pessoas que apreciei, Estarei a ler bem, será esta nota sobre o mesmo Trump aqui [isto é, na página de FB de JMCP] tantas vezes elogiado, o que muitas vezes me valeu, em resposta a meus comentários acusações primárias, mesmo ofensas?
Então afinal Trump não é o revolucionário destruidor do sistema, o salvador do mundo em relação ao imperialismo da NATO (que é real, entenda-se), o vencedor dos execráveis falcões Biden e Kamala, o amigo de Putin que compreendia as razões morais e "históricas" do novo autocrata, o pacifista que ia resolver a guerra da Ucrânia? Aquele que não tinha de ser criticado pela sua política interna neofascista, anti-imigrantes, anti-cultura, nepotismo-corrupta de negócios de bitcoins, porque isto é coisa que só interessa aos americanos? O Trump amigo e protetor de todos os neofascistas europeus?”
“Há tempos, escrevi que estava para ver duas coisas que me pareciam inevitáveis: a quebra da amizade entre Trump e Musk e a quebra da admiração dos nossos trumpistas quando já não pudessem calar mais a sua contradição no triângulo Trump-Ucrânia-Israel. Confirmou-se há pouco tempo a minha primeira afirmação, hoje a segunda.”
“Quem se mantém sempre na esquerda social, como eu, pode sofrer percalços e derrotas, mas não cai em contradições. Quem abandonou essa esquerda em que lutou – abandono por cansaço, por frustração, por confusão? – para se refugiar no jogo intelectualmente narcísico da geopolítica (quase que um exercício de análise futebolística, por natureza dicotómica e maniqueísta, coisa que também essa casa gasta muito) acaba por ser vítima da limitação intelectual e moral dessa escolha.”
“Aqui vi escrito e repetidamente me foi dito em privado: "A esquerda acabou. A resolução da crise do sistema já não virá por via da revolução social, só será possível por via geopolítica, pela vitória de uma nova potência, mesmo que pela guerra". Vê-se ao que leva a perspetiva geopolítica exclusiva."
JMCP respondeu com as suas habituais deformações da sua própria escrita anterior e que podem ser comprovadas pela leitura de escritos anteriores. E voltou às deturpações das minhas posições bem conhecidas: Trump “deixou-vos [vos, a quem? a mim?] sem norte e completamente entregues à estupidez dos vossos governantes.” Que eu sou cúmplice do imperialismo, a soldo da NATO, é acusação habitual que ele me faz a cada comentário meu aos seus dislates, mas já chega! E poderei continuar a chamar de meu amigo a quem repetidamente me faz isto? Eu até desculpo, porque se calhar nem percebe. Já tem acontecido ligar-me no dia seguinte como se nada fosse; parece que é coisas normal entre benquistas e sportinguista, mas eu não ando nesse meio.
Diz JMCP: “Quanto a Israel, não fui eu quem se manifestou ofendidamente por ter sido equiparado aos nazis Percebe-se agora que são piores, é um Estado terrorista governado por criminosos. Nem fui quem se manifestou contra a erradicação de Israel da comunidade internacional como Estado terrorista. Não, não fui eu quem defendeu o "direito de Israel à existencia" e o " direito de Israel se defender”.
Bem, não foi ele; mas não está a dar a entender que fui eu que escrevi coisas destas? Fui eu que escrevi alguma coisa nesse sentido, alguma vez? JMCP, meu antigo amigo que eu respeitava, basta! Chega de desonestidade (ou de senilidade?), porque já não consigo considerar de outra forma tais dislates.
E continuou num comentário seguinte:
“Relativamente à política interna, jamais poderia deixar de repudiar o racismo e a política de imigração, mas não seria com base nessas razões que iria preferir Biden a Trump. A política interna diz respeito antes de mais aos americanos, enquanto a política externa sem deixar de ter efeitos internos tem as suas principais consequências no exterior, nos países directamente atingidos pelos seus efeitos. E quando esses efeitos se manifestam na Europa, como era o caso, não tinha nem tenho qualquer espécie de dúvida quanto à mais perniciosa.”
Claro que acredito na posição essencial de JMCP, no que se refere ao racismo, mas a verdade é que nunca, mesmo quando eu o desafiei explicitamente, ele condenou a política interna de Trump. Só hoje escreveu isto e mesmo assim com, muitas nuances, continuando a afirmar que é coisa que só respeita aos americanos, como se a posição do presidente da maior potência mundial não tivesse influência em todo o mundo e particularmente no alento ao neofascismo galopante por toda a parte.
O que é Trump? O que é Putin?
Para concluir, alguma coisa sobre uma tese de JMCP que vejo partilhada por alguns meus amigos: Trump deve ser visto com a simpatia para com quem está a destruir o sistema.
Nada mais falso. O que é esse “sistema” que Trump está a destruir?
Quem assim fala devia começar por definir o que entende por sistema: o sistema social e económico, isto é o capitalismo? O sistema de ordenação mundial, na esfera das relações internacionais e da geopolítica? O sistema cultural e mesmo civilkilzacional? São categorias muito diferentes, embora se interpenetrem.
Trump propõe-se destruir o capitalismo? Obviamente que não. Trump significa é um dos polos de um conflito atual dentro do próprio capitalismo. É um homem do triângulo reacionário (em termos de evolução objetiva do capitalismo) do capitalismo clássico industrial-imobiliário-extrativista contra o moderno capitalismo financeiro e rentista (o rentismo do capitalismo anónimo das bolsas). É luta interna a que os trabalhadores e os progressistas são alheios – como Lenine ensinava em relação às contradições entre os imperialismos europeus pré-guerra de 1914 – mas devendo explorar essas contradições. O neoliberalismo esteve ao serviço do capital financeiro, com a globalização, a universalização dos mercados, a mobilidade da mão-de-obra e a deslocalização. Com isto, desindustrializou-se domesticamente e criou-se um enorme campo de pobreza, de insegurança, de descontentamento difuso que alimentou o terreno eleitoral do neofascismo.
Na Europa, esta contradição de base dos capitalismos atuais parece secundária em relação aos determinantes políticos e sociais do neofascismo mas ela é fulcral nos EUA. O neofascismo americano trumpista é uma reação capitalista arcaica contra a evolução do próprio capitalismo. Não é a primeira vez na História que as forças de progresso se veem enredadas em contradições do sistema dominante. Pensar-se que isso conduziria automaticamente ao fim do sistema é um erro com consequências trágicas. O capitalismo está bem e recomenda-se, por toda a parte, desde o Ocidente ao Sul Global.
A segunda perceção do “sistema” é a geopolítica. É verdade, a ordem unipolar que sucedeu à guerra fria está em crise e em mudança acelerada. O domínio imperialista unipolar, americano e do Ocidente alargado, está em crise. Simpatizamos, com razão, com, a tendência pra a multipolaridade, para o respeito para com todas as soberanias nacionais – sem prejuízo da agregação de grandes regiões mundiais. No entanto, a História ensina-nos que isto sempre se passou como movimentos tectónicos que não definiram grandes épocas de rotura qualitativa do planeta. Os impérios sucedem-se sem que mude o essencial. Na época esclavagista clássica, houve o Egito, a Mesopotâmia, a Pérsia, em vagas sucessivas de hegemonia no Crescente Fértil. Depois a Grécia e Roma. Mesmo depois da destruição do Império Romano, manteve-se a escravatura no regime germânico, até à sua modernização da servidão feudal. Para os lados orientais, sucederam-se impérios, com apogeu e queda, de mongóis e otomanos. No Ocidente, primeiro carolíngios, depois sacro-imperiais germânicos, a seguir ibéricos, depois a burguesia inglesa e neerlandesa. Mais tarde, a Revolução francesa, mas logo seguida das convulsões imperiais europeias, a simular o jogo geopolítico de hoje que escondeu a “revolução passiva” (em termos gramscianos) que, entretanto, impôs o capitalismo universal, desde a Europa à América descolonizada e à descolonização africana dos nossos tempos.
Muito muda para que tudo fique na mesma, é a lei da geopolítica. Pensemos nisto nos dias de hoje.
Finalmente, o “sistema” civilizacional, cultural. É verdade que o nosso sistema ocidental, entendido nestes termos, está em crise, em perda de valores essenciais, em época de perplexidade em que conhecimentos, esquemas mentais, ideias e normas morais parecem questionáveis. O pós-modernismo convida-nos ao relativismo, à nivelação cultural, mas é coisa que repugna a quem compara a cultura que construímos com culturas cujo arcaísmo compreendemos racionalmente mas que não resistem a uma análise em termos evolutivos.
Relacionando com a atual mudança geopolítica, em que a dinâmica objetiva favorece regimes atentatórios dos ideais europeus das luzes, o problema é agudo, quando vemos que as potências emergentes se baseiam em sistemas de valores ultrapassados pelas nossa conquistas sofridas, com lutas, se baseiam em sistemas retrógrados, autoritários, violadores do que conquistámos como direitos humanos, regimes despóticos, até mesmo teocráticos.
Volto a JMCP, que me escreveu, sobre a democracia: “Quanto aos perigos que corre a democracia, que tu consideras superior a todas as demais formas de governo, posso eu bem. Dormes descansado com a Ursula e tens pesadelos com a Le Pen. A mim, esse dilema não me tira o sono…”
Claro que considero a democracia como superior e lamento que ainda haja alguém, de “esquerda”, que lutou contra o fascismo, que ponha em causa a democracia. Eu bem quero evitar a tal etiqueta de vermdelho-castanho, mas JMCP está sempre a provocar-me. E que Le Pen e quejandos me tiram o sono é bem verdade.
É certo que o modelo atual de democracia degenerou e está cheio de defeitos e de corrupção, mas a solução é corrigi-lo, aprofundá-lo, transformá-lo numa democracia real e participativa, não negá-lo ou aceitar um arremedo musculado à Putin ou Orbán (JMCP devia ir ver a Hungria, tentando ver a fundo tanto quando pode um turista, como eu acabei de fazer).
Já agora, fora da linha condutora desta discussão, acrescentou JMCP: “Falaste de Putin...Biden também falava como tu de Putin…” Exemplar! Não se argumenta diretamente, atira-se com um “sound bite” O que é que eu tenho a ver com o que Biden diz? Não tenho direito à minha opinião independente de Biden ou de seja quem for? É uma versão nova do argumento “ad hominem”. Mal vão os tempos quando campeia o contorcionismo mental entre homens inteligentes e cultos.
A crise deve ser resolvida em sentido retrógrado ou lutando pelo aprofundamento das conquistas humanísticas da nossa civilização? Que a democracia ideal do liberalismo foi traída e está degenerada é óbvio, mas isto significa desejar-se a vitória besta guerra de quem nem sequer atingiu os patamares positivos desse sistema de valores?
Ou, para ser muito elementar e imediato em argumentação, como pode hoje desejar o triunfo da iliberalidade auutoritária, antidemocrática, quem ainda viveu o pré-25 de Abril? E, se já não for para nós, o que queremos para os nossos filhos e netos? Antes e depois do 25 de Abril, visitei países muito diferentes, com sistemas diferentes, Uma das minhas preocupações, a tentar aprender alguma coisas, foi sempre a de me perguntar: “é esta a sociedade que quero para mim e para os meus?”
A seguir, outro ídolo mais ou menos abertamente venerado por JMCP, Putin.
A meu ver, é uma personagem muito menos primária do que Trump, sem nada da boçalidade do americano. O que emTrump é primário, instintivo, grosseiro e tosco, é cerebral, frio, elaborado em Putin. É um erro a afiormação frequente nos media ocidentais de que Putin é, louco. Tudo menos isto, ao contrário da muito provável psicopatia de Trump. Mas por isto é permitido pensar-se que Putin é mais perigoso.
Putin é um produto fabricado pelos serviços secretos, pelo KGB. Há toda uma mentalidade que daí deriva: desconfiança, duplicidade, insinceridade, frieza, pragmatismo político, primazia da “real politik”, desprezo pela legalidade. Tudo o que não se deseja num dirigente democrático, coisa que obviamente ele não é.
A isto se junta, explosivamente, uma componente ideológica, quase místico-religiosa, que entraria em contradição com aquelas características pessoais se ele não conseguisse articular tudo, como parece fazê-lo, numa conceção perigosas de um seu destino quase messiânico, muito ao sabor do espírito da velha “mãe Rússia”.
A propósito, uma coisa curiosa: a tradição europeia é da masculinizarão da entidade comunitariamente agregadora, pátria, que, apesar do género feminino, chama à figuras paterna. Na cultura russa, valoriza-se a mátria, a “santa mãe russa”, com tudo om que isto significa psicologicamente.
Putin joga habilmente em dois tabuleiros, exemplarmente na questãoo ucraniana. Apela ao instinto de defesa quando fala da segurança da Rússia, da ameaça da NATO, da provocação da Ucrânia. Ao mesmo tempo, joga noutro, apelando ao espírito grão-russo que Lenine tanto denunciou, ao falsificar a História em favor de um mito de nação comum triplo-russa, russa propriamente dita, bielorussa e ucraniana, numa completa falsificação histórica que JMCP e outros bebem como indiscutível. Evocar o Rus de Kiev é como dizer-se que Portugal tem direito à Estremadura espanhola porque tudo eram terras de Viriato, o nosso herói lusitano, que talvez nunca tenha posto os pés em terrenos do nosso atual país.
É curioso que este historicismo sempre presente no discurso de Putin não se aplique à Bielorrússia, em nada indistinguível da Ucrânia na perspetiva “histórica” de Putin. Mais, Minsk sempre foi muito mais russa, ao longo dos séculos, do que Kiev. O homem é pragmático e para quê abrir nova frente de conflito quando tem naqueles lados o que verdadeiramente quer, um Lukashenko sempre servil? E como é que estes atuais “comunistas” compreendem que Lenine, ao criar a República Soviética da Ucrânia, tenha ido contra a História, que determinava, à Putin, que os dois povos, russos e ucranianos, com línguas e culturas diferentes, eram uma só nação reunida no mesmo estado? Pois é, depois de Lenine veio Estaline…