#35 – O regresso da besta (II)
Neste número: A abrir – Basta de horror! | Miniensaio | Notas semínimas | Citação | Leituras recomendadas
“Gouveia e Melo apresenta-se como candidato: “Precisamos de um presidente diferente (… e) justificou a sua candidatura com o facto de ter sentido um apelo e apoio para que o fizesse, nos últimos três anos”.
Quando um político diz mover-se não por um sentido de missão, ou por um objetivo ideológico ou até mesmo por simples desejo de afirmação pessoal, e em vez disso corresponde sacrificadamente a um apelo , a um clamor que vem do fundo da alma do povo, lembro-me da nossa História, de um major que “sentiu” o mesmo em 1917 e principalmente de um modesto e desprendido professor coimbrão a quem o povo suplicou que sacrificasse toda a sua vida académica e familiar, potencialmente amorosa, para o sacerdócio celibatário da salvação de Portugal.
BASTA DE HORROR!
Nas guerras, sempre houve os eufemisticamente chamados “danos colaterais”. Na guerra moderna, eles têm aspetos contraditórios. Por um lado, pode haver tendência para serem reduzidos, pela precisão que hoje têm as armas à distância. Por outro lado, são agravados pelo enorme aumento do uso de armas com grande poder destrutivo e até pela atenuação do fator dissuasivo humano, porque os operadores, no conforto de uma sala distante de comando, não estão a ver, como os combatentes clássicos no terreno, as crianças a morrerem sob um ataque.
Nem esqueçamos que a guerra gritante em Gaza está a desviar as atenções da guerra silenciosa na Cisjordânia. Agora é o anúncio da instalação de mais de uma vintena de novos colonatos judeus, a retalhar aquela terra e a torná-la inabitável pelos seus habitantes de há dois milénios.
O que se está a passar em Gaza nem sequer pode ter esse álibi de danos colaterais. É ação consciente e voluntariamente dirigida a esses alvos. Bombardear hospitais, estruturas de abastecimento de água numa região semidesértica, postos de distribuição humanitária de alimentos a crianças, é barbárie, é terrorismo de Estado, é crime de guerra e contra a humanidade. É parte de um plano de erradicação de um povo, um ato inegavelmente classificável como genocídio.
E até é uma ofensa à memória dos milhões de judeus que foram massacrados pelos mesmos motivos. Eu tenho antepassados judeus de há bem poucas gerações, sefarditas marroquinos passados aos Açores e talvez isto tenha contribuído para a simpatia que sempre tive pelo sofrimento do povo judeu. Agora, é mais uma razão para desejar que esse povo se liberte já de um Estado criminoso.
O REGRESSO DA BESTA (II)
Continuando, Ontem e hoje.
O discurso. Estudar o discurso da ultradireita é tão importante como estudar a sua natureza e o cenário do seu palco, Em política pode haver discursos diferentes mas não pode haver ausência de discurso. Seria absurdo, negação da própria política.
Pode e deve haver, como sempre houve no campo do progresso, um “discurso profético”, o que eu tento escrever – talvez ilusão minha –, aquele que, como Espinosa dizia dos antigos profetas, é o de quem vê mais longe do que a cada momento parece evidente e o apresenta aos outros, acalentando-lhes a vontade e produzindo o seu próprio povo (Espinosa lido por Gramsci e adaptado por mim).
Pode haver também o discurso de feira, de vendedor de banha da cobra, aquele que, pelo contrário, apela para o passado, para o lado negro e destrói o povo. Pode haver o discurso infantil e desestruturado da generalidade da vida política.
O que não há é discurso 0.0.
Comparar o discurso do Chega e dos outros neofascistas contemporâneos com o fascismo do século XX revela tanto continuidade ideológica quanto diferenças de conteúdo e estilo, mas estas diferenças são essencialmente contextuais e táticas. No Leopardo, Tancredo (e não o príncipe, como é comum citar-se) diz que “É necessário que tudo mude para que tudo fique na mesma”. O que eu leio mais frequentemente é uma citação errada, mas que me convém mais para esta escrita: “É necessário que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma”.Em novo contexto, com grande força da ideia democrática, com a memória dos horrores do antigo fascismo – só há meio século no nosso caso –, a besta que se julgava extinta rejuvenesceu e adaptou-se aos nossos tempos. Mudou alguma coisa para tudo ficar na mesma.
Ontem e hoje, a mensagem, a comunicação, o discurso do fascismo e agora da ultradireita neofascista têm características bem identificadoras: a demagogia; a competência na utilização dos meios e conseguindo presença desproporcionada na comunicação social, principalmente na TV; a falsificação e a mentira; o ecletismo, com falta de uma linha coerente, com sentido global e de estratégia.
Proximamente, porque este ensaio vai ter ode ser longo, falarei das causas objetivas e subjetivas da ascensão do neofascismo. Um dos aspetos importantes da sua capacidade de captação de votos tem sido, como já tinha sido há um século, a orientação direta e focada com intensidade do discurso, dirigido para os pontos afetivamente mais sensíveis no conjunto do descontentamento coletivo. Falar para a inteligência, como é tradição da esquerda, é muito menos eficaz do que falar para a emotividade primária.
Não é que os “partidos do sistema” não possam fazer uso da comunicação em estilo de propaganda – e até o fazem, à sua maneira – mas usam preferencialmente a comunicação para passar imagem, pesando mais o subliminar, a aparência fotogénica, a expressão mais ou menos atraente de simpatia, a imagem de seriedade de um candidato a primeiro-ministro. Todavia, o discurso substantivo é escasso, pobre e superficial, sem possibilidade de compensação do impacto emocional primário dos “sound bites” da ultradireita neofascista. O que é forma e substância vazia no campo democrático é mensagem eficaz no campo neofascista.
Pior ainda é a ineficácia comunicacional da esquerda à esquerda. A sua respeitabilidade e credibilidade vêm principalmente da sua história, da coerência entre princípios e ação, daquilo que ainda resta da consciência política e de classe do seu eleitorado.
Pelo contrário, é opinião muito prevalecente de que é prejudicada por um discurso antiquado, intelectualmente honesto mas desadequado da estrutura mental do eleitor típico de hoje e com uso descuidado dos meios que hoje são mais utilizados pelos jovens (e que mais facilitam a sua manipulação pela ultradireita, sem resposta eficaz). E falo especialmente de jovens porque, como veremos adiante, são uma camada que contribui para a votação do Chega em percentagem superior à média nacional.
Discursivamente e como imagem pública identificadora, o Chega é só Ventura. Não chegou ao ponto de Nigel Farage, que criou o Reform UK com estatuto de empresa unipessoal, ou da mistura política e negócios pessoais de Trump, mas tem o mesmo domínio de facto sobre o partido, que sem ele não é nada.
Ventura não é um primário, intelectualmente, como Trump ou Bolsonaro. É um homem inteligente e instruído, com um doutoramento em Direito. Neste aspeto, no campo histórico do fascismo, só tem companhia em Salazar. O principal perigo é exatamente esse – com o jogar da capacidade mental com desmesurada ambição, oportunismo e ausência de princípios éticos controladores. Muito provavelmente (e faço esta reserva porque não sou psicólogo) é mais um exemplo de produto desta fábrica de narcisistas em que se transformou a sociedade – mas uma fábrica dirigida pelos próprios narcisistas, em círculo vicioso. Hoje, cada vez mais nos cruzamos com narcisistas; felizmente, a maioria é só tristemente patética, mas alguns são perigosos, especialmente quando têm poder.
Ventura, nas suas intervenções, nas mensagens de rede, nos debates, ofende a inteligência e a decência. A nossa tendência superior pode ser a de o desligar mas isto é fazer-lhe o jogo. Por falar em jogo, lembremo-nos de que Ventura tem a escola do debate televisivo das segundas-feiras, sobre futebol, uma exibição obscena da degradação mental. É coisa que não vejo habitualmente mas fui ver alguns desses debates, retrospetivamente. Vale a pena, para compreendermos o que é a embriaguez mental que revelam, mesmo por parte de pessoas que, na vida normal, temos como respeitáveis. Em geral, a política está a assimilar muito da lógica televisiva, de espetáculo, até de “reality shows”; neste caso, do indiscritível mundo televisivo do futebol e da paixão clubista.
E, tendo falado de oportunismo, recordo que Ventura não se fez coerentemente num desenvolvimento de pensamento neofascista. Como o Mussolini ex-socialista, Ventura deu o salto repentino para a criação do Chega depois de anos de construção de carreira política no PSD. Não sei o que foi a luz que lhe apareceu na estrada para Damasco, mas deve ter tido tantos megawatts epifânicos como os que causaram o apagão de há pouco tempo – e o neofascismo é um grande apação. O seu sinal mais evidente de oportunismo é o da sua tese de doutoramento em que, indo ao encontro da posição consensual do seu júri, defendeu posições evoluídas de filosofia do direito que agora desmente sem vergonha. O que pensa de facto Ventura? Talvez nada, para além do que intui que a cada momento o beneficia.
Mas o que é que há de novo no discurso atual neofascista, coisas a que temos de atender para o combater?
É maior a continuidade com o fascismo clássico do que a novidade. Esta gente não é muito dada a elaborações ideológicas, embora sejam hábeis em aproveitar os leitmotives do momento. Os pontos de continuidade são: i. o discurso de ódio, de exclusão; ii. o culto do “homem forte”; iii. a ideia do inimigo absoluto; iv. o discurso anrtissistema; v. o nacionalismo extremado e o tradicionalismo. Vamos então por partes.
i. O discurso de ódio, de exclusão
É um aspeto central de continuidade. Procurem-se gravações antigas de Nuremberg ou da Praça Veneza e compare-se com o discurso de hoje. Até nem sequer se atenuou a imagem, utilizando a exceção que foi a de Salazar, com o seu discurso académico, paternalista, de concórdia entre todo o povo de Deus, pátria e família. O fascismo, como tudo na História, não é um pronto a vestir uniforme, e o discurso salazarista, com tudo tecnicamente contra – uma cara nada fotogénica, uma voz feia, um sotaque provinciano, um estilo erudito impopular – que o homem até escrevia muito bem – teve a eficácia que conhecemos na pele.
O ódio, a agressividade, prolongam-se em toda a atuação, do insulto nas redes sociais à alarvidade dos apartes no parlamento. Mas, alarvidade ou brutalidade, não era o que a plebe queria quando o imperador lhe oferecia o circo? É que há quem premeie a boçalidade, quem vote no partido do ladrão de malas, no cliente de sexo de adolescentes, no agressor doméstico.
É claro que os tempos mudaram e a besta adaptou-se. O discurso fascista clássico era abertamente belicista, expansionista e militarista, muitas vezes com linguagem violenta e brutal. Hoje, há mais moderação na linguagem, mas com o mesmo carácter provocatório. Rejeitam indignadamente o rótulo de fascista, preferindo termos como “patriótico”, “anti-sistema” ou até, pasme-se, “defensor da liberdade”. Há académicos que, a pretexto do purismo do rigor histórico, limpam esta imagem, que negam a relação entre o fascismo clássico e a atual ultradireita neofascista. Cuidado com eles!
Com hipocrisia, o neo fascismo proclama agora a aceitação da democracia e dos seus processos, mas defende leis mais duras, poder mais centralizado, maior controlo sobre o judiciário e repressão dos movimentos sociais. Vai contra a ordem constitucional, pelo menos em espírito, quando, por exemplo, propõe a prisão perpétua ou a castração química. O caso húngaro, o de mais fácil identificação entre regime político e neofascismo, é claro: uma ditadura reacionária, tradicionalista, ultranacionalista.
O discurso de ódio e de exclusão é também um discurso cobarde. Tem como alvo minorias fracas e desprotegidas, como os imigrantes e os ciganos mas já tem mais cuidado com grupos que lhe podem dar resposta mais contundente, como cá os africanos de segunda geração, já organizados socialmente.
É um discurso de desumanização, incentivando a hostilidade em termos de estigmtização, baseado em estereótipos, reduzindo os grupos alvo a perigos ou fonte de problemas – os parasitas, a praga”, os invasores, os doentes, os que querem substituir-se à nossa identidade.
O discurso neofascista, mesmo quando não explicitamente violento, defende descaradamente medidas que violam os direitos humanos e a consciência moral coletiva: deportações em massa, separação de famílias, punições desumanas, suspensão de direitos civis, desproteção social. Como produto que sou da cultura portuguesa, como combatente antifascista e progressista desde a juventude até aos atuais 80s, não concebo justificação para viver se não pensar que a minha gente em que estou diluído rejeita, por natureza, estas monstruosidades, Infelizmente, ainda tenho o impulso da indignação. Por isto digo: amigos, companheiros, irmãos, indignai-vos!
O neofascismo alia o discurso de ódio ao discurso populista. Na literatura da luta de classes, fazemos-lhe um favor, e claro que não podemos deixar de o fazer. Nunca se vê o ódio. A luta faz-se com a razão, não com a paixão e o ódio. Há a análise racional do mecanismo da exploração do homem pelo homem, há a compreensão do processo histórico, mas sempre com objetividade não emotiva (sem prejuízo do valor afetivo da luta). Nunca se põe a questão no nível do apelo às reações primárias. Isto é o que o fascismo faz, mas não é preciso odiar para combater.
O populismo favorece este clima conflitual, de ódio, porque é uma perceção emotiva, irracional, afastando-se da análise científica da situação, das suas contradições. Proclama que já não há a divisão crucial entre a esquerda e a direita, entre possidentes e possuídos, entre capitalistas e proletários, mas sim entre os “de cima” e os “de baixo”, categorias indefinidas que apelam ao sentimento do “estar”, em vez do “ser”. Não há relações de produção, não há mecanismos objetivos de exploração, não há classes; apenas uma massa informe em que nos “sentimos” estar. O pós-modernismo das narrativas subjetivas entrou por todas as portas e janelas.
ii. O culto do “homem forte”
O super-homem é um velho mito do fascismo, que, na sua visão totalitária, queria moldar um “novo homem”. Grande, heróico, na versão épica do fascismo italo-alemão; pequenino, rural e submisso a Deus e à autoridade, na nossa versão tuga do fascismo, porque cada um tem o fascismo que merece. O fascismo italiano revia-se no soldado das legiões romanas imbatíveis, o alemão na pureza do ariano imaginado, na senda do “Übermensch” de Nietzsche.
Esta faceta não aparece no discurso mais terra-a-terra (mais medíocre?) do Chega e dos seus irmãos europeus mas é visível em Trump. Não é fácil interpretar de outro modo a simpatia – quase fascínio – de Trump por Putin, aparentemente também por personagens como Orbán e Netanyahu. Se incluo este aspeto do “homem forte” nesta discussão localizada, é porque ele também tem a ver, indiretamente, com uma característica notória do cheguismo luso, o machismo. Na galeria de insultos berrados pelos deputados do Chega avultam os insultos às deputadas adversárias com conteúdos primários machistas, sobre a sua aparência física, o seu vestuário e os seus adereços. E é sintomático que, no discurso e na ação do Chega, nunca haja qualquer preocupação com a situação e os problemas das mulheres.
iii. A ideia do inimigo absoluto
É um leitmotiv indissociável do discurso de ódio, ontem e hoje. O ódio “popular” não é canalizado para o poder, para a classe dominante, para a elite (embora Trump faça muito discurso antielite, nomeadamente em relação às universidades). A luta é desviada do alvo natural para se dirigir a um terceiro elemento, nem “os de cima” nem “os de baixo”, antes um grupo que se escolhe como bode expiatório. A quem é que, afinal, isto interessa, quem é que lucra?
Ontem eram os judeus, hoje são os imigrantes. É uma ironia, porque, sendo muçulmanos muitos dos imigrantes de hoje, e num maniqueísmo primário, os neofascistas de hoje apoiam os inimigos desse novo inimigo, os judeus que antes eram o diabo. O Trump que quer ser pacifista na Ucrânia – mas à maneira russa – é falcão no que toca a Israel. Orbán é amigo do peito de Bibi. E mesmo o Chega, na sua vacuidade programática, não se esqueceu de proclamar que assume “um compromisso inequívoco com a defesa da existência do Estado de Israel, face ao recrudescimento do antissemitismo e das ameaças terroristas de que o povo judeu é alvo, pugnando pela transferência da embaixada portuguesa para Jerusalém” (programa eleitoral do Chega). Um partido herdeiro do nazi-fascismo a falar de antissemitismo raia o surrealismo.
No caso do Chega, os imigrantes partilham a sua invetiva contra os ciganos, indo ao encontro de uma preconceito secular. Curiosamente, aqui ao lado também há a mesma ou maior proporção de ciganos mas o Vox, ao contrário do Chega, tem em conta esse eleitorado e diz lutar pela sua integração, com igualdade de direitos em relação ao todos os espanhóis. Será porque a cultura espanhola integrou e até “turistizou” a cultura cigana?
Parece-me que, progressivamente, a hostilidade inicial do Chega em relação aos ciganos está a diminuir de importância em comparação com os imigrantes. (Entre parênteses: convém precisar. Imigrante, neste caso, é principalmente o de origem asiática, maioritariamente muçulmano e de pele escura. Claro que o Chega está de braços abertos para a vinda crescente de reformados europeus, de nómadas digitais, de brasileiros ricos, os que compram casas de milhões e pervertem o mercado imobiliário).
Nos últimos tempos, a hostilidade em relação aos imigrantes, com xenofobia e laivos óbvios de racismo, tomou um tom mais economicista, com invocação do papel dos imigrantes na competição no mercado de trabalho e com a narrativa falsa do imigrante parasita, que não quer trabalhar, que é subsídio-dependente e a quem o Estado dá mais regalias sociais do que aos nativos.
Isto corresponde a diferenças de circunstância do discurso anti-imigrantes dos vários neofascismo. O Chega, como a AfD alemã, é um caso lateral, porque quer evitar o labéu do racismo, num país em que ainda há marcas da colonização (e da descolonização) e em que ainda hoje é vulgar a tese de que não temos racismo “constitutivo”. Da mesma forma, é contraproducente tratar na Alemanha a questão da imigração em termos de racismo, estando ainda bem presentes na memória os crimes cometidos em nome da pretensa superioridade racial.
No resto da Europa e nos EUA, a hostilidade aos imigrantes vem embrulhada em posições abertamente racistas – e também relacionadas com a diferença de religião. Os imigrantes são apresentados às massas incultas – e não só… – como uma ameaça civilizacional, como os intrusos que vêm destruir a nossa cultura e dissolver a nossa identidade nacional. É a chamada “teoria da grande substituição”, mais um exemplo do que por aí pulula de teorias da conspiração – que aparecem como cogumelos na estação da irracionalidade (e aparecem tanto à direita com à esquerda, infelizmente). É a “insegurança migratória” e a “desfiguração da identidade francesa” agitadas por Marine Le Pen ou a oposição de Viktor Orbán a qualquer imigração não cristã e o seu slogan de que “a Hungria é para os húngaros”..
O imigrante é ostracizado como um diabo infiltrado que corrói as bases da sociedade em que assenta a sua segurança. O imigrante é violento, extremista, violador de mulheres, assaltante à mão armada. Tudo isto é apresentado com “provas” fabricadas sem qualquer pudor, porque a mentira é uma constante da vida dessa gente. E hoje como ontem, então o pérfido judeu, que cumpria o plano desenhado na infame fabricação do Protocolo dos Sábios de Sião
A consequência lógica é a defesa da restrição da imigração, Quando não o conseguem diretamente, influenciam os partidos de centro ou direita, receosos do poder eleitoral do neofascismo, como se passa nos países escandinavos e até com o governo trabalhista britânico de Keir Starmer.
O caso extremo, com aspetos de desumanidade e de violação de direitos humanos, é bem conhecido, a política de expulsão de imigrantes pela administração Trump. Resta saber o que acontecerá quando políticas destas se defrontarem com uma realidade prática incontornável: a economia dos países desenvolvidos, a mudança tecnológica e das qualificações dos nativos, não passam sem a mão-de.obra imigrante, principalmente nos trabalhos menos qualificados.
iv. O discurso antissistema
Também neste tipo de discurso há continuidade com o fascismo clássico e algumas diferenças contextuais, de adaptação aos tempos atuais. O fascismo clássico apresentava-se como rotura com o que considerava os polos opostos do sistema, a democracia liberal e o marxismo, ambos vistos como decadentes. Havia nisto uma missão “transcendental”, messiânica. Exaltava-se um coletivo idealizado, de povo-nação, contra as elites, a burguesia cosmopolita desenraizada – os judeus! – tudo representado pelo sistema democrático parlamentar.
Hoje, o sistema partidário é aceite pelo neofascismo ·– para o utilizar. Ele é é patológico e tem de ser corrigido, mas sem defrontar as pessoas tendenciosamente conservadoras com uma ideia de subversão total do sistema. Em cada época, a versão mais eficaz da estratégia de mudança para a conservação!
Os partidos eram antes a expressão da decadência do sistema e deviam ser eliminados. Curiosamente, na Alemanha e na Itália (mas já não em Portugal, na Espanha e na Hungria), para serem substituídos por outro partido, único, mas que de facto não era mais do que a correia de transmissão do líder carismático. Ele liderava sem discussão o novo sistema. Baseado no corporativismo – como superação da luta de classes –, na unidade nacional, na rejeição do partidarismo fracionário.
O neo fascismo assume hoje uma postura antissistema, mas no sentido difuso de “antiestablishment”, contra uma forma geral de organização e funcionamento consensuaisl da sociedade, sem definição de alvos e responsabilidades específicos. O sistema é tudo e não é nada, é um papão que cobre tudo o que se sente que está mal e para que não se encontram causas específicas. É fácil culpá-lo porque não se sabe o que é? O sistema económico, o capitalismo? O sistema ideológico, o neoliberalismo? O sistema mental e cultural, o individualismo selvagem?
O neofascismo não põe em causa o sistema económico capitalista, antes o defende. Não põe em causa o neoliberalismo, que defende indo até aos limites da privatização e do império do mercado. Proclama a privatização total do serviço público, no núcleo duro do Estado social de bem-estar: a saúde, a educação, a segurança social. Neste aspeto, o Chega é uma IL mais iletrada.
E até nem põe em causa o sistema político, proclamando a sua inserção no modelo da democracia parlamentar. O que faz é aproveitar-se, num discurso radical de pseudo-mudança, das fragilidades do sistema para o socavar. Ataca as instituições, ataca as entidades da sociedade civil – universidades, comunicação social, movimentos progressistas e emancipatórios, como é patente quando chega ao poder, com Trump ou Orbán.
Já não há um mal absoluto no sistema partidário, como dizia o fascismo clássico. o que há é a sua contaminação pela corrupção. É claro que furto de malas, violência doméstica ou prostituição de menores são coisas só dos outros partidos… E Ventura e seus amigos claro que não pertencem à negregadas classe política.
O fascismo clássico tinha uma dimensão épica, valha-lhe isto para quem valoriza a coerência. A luta contra o sistema era “revolucionária”, assumia a rotura, encenava-se com a espetacularidade militar, a estética e a simbólica marciais, com destaque para a simbologia (a suástica, a águia romana, a cruz de Cristo, o jugo e as flechas dos reis católicos).
A simbólica de hoje do neofascismo é a do fato e gravata da detestada classe política – que até já se apresenta desengravatada. A linguagem passou do épico para o plebeu, em estilo de discussão do futebol (lembre-se o Ventura da TVCM). Faz-se de “memes”, de ”sound bites” pimbas. De “panem et circenses” (pão e circo), porque nunca se reinventa a roda e não é preciso inventar – só atualizar — as formas de alienação, use arrebatamento mental. A natureza dotou o homem de inteligência para que uns a usem em seu proveito apagando a inteligência dos outros. Falamos muito noutra versão dessas dominação: que uns construam a sua riqueza à custa da pobreza dos outros, mas o mesmo se aplica à riqueza imaterial (julgam que isto não é marxismo?).
Parece que também aqui se aplica a conhecida máxima de Marx: “a história repete-se sempre, mas primeiro como drama e depois como farsa”.
v. O nacionalismo extremado e o tradicionalismo
Mais outro campo em que do essencialismo do fascismo clássico se passou para o oportunismo medíocre do neofascismo. O ultranacionalismo era constitutivo do fascismo, com a exaltação do mito nacional (e racial), que sustentava a unidade em redor do chefe, portador do espírito ancestral fosse de Siegfried, de Augusto ou do Afonso Henriques miraculado em Ourique. Trump não tem heróis destes mas evoca também o desígnio divino, o use uma “America great again” a cumprir o “destino manifesto”. O Chega é demasiadamente inculto para saber da histórias; ou então percebe que o seu eleitorado é demasiadamente rasteiro para se importar com essas coisas, mesmo com figuras decorativas partidárias como Pacheco de Amorim.
Deixa o nacionalismo de opereta aos seus aliados corpusculares, que até se podem chamar gloriosamente de 1143. As datas são simbolicamente importantes, mas sempre instrumentalizadas. Se aprendemos na escola o significado de 1143 – o tratado de Zamora – não nos esqueçamos de que Salazar, no plano grandioso de exaltação fascista dos Centenários, não podendo alterar 1640 para 1643, foi buscar o marco menor de 1140, coisa burocrática, do primeiro escrito em que Afonso Henriques se intitula rei. O nosso pequenino fascismo de secretaria da faculdade coimbrã.
E nem sequer alguma vez o salazarismo invocou uma superioridade intelectual, uma cultura étnica, uma mitologia a rivalizar com o Anel dos Nibelungos. Como podia fazê-lo, se ao mesmo tempo reprimia o que de melhor tinha a criação cultural portuguesa? E como pode hoje fazê-lo o Chega, se quer ir ao encontro de um panorama cultural de valorização do que é nosso que se exprime, por exemplo, no “patriotismo cultural” da NOVA School of Business and Economics?
O nacionalismo cheguista é prático, é só o do instrumento de afirmação do sentimento de identidade contra o inimigo que está a entrar pelas nossas fronteiras. Nem era um aspeto explicitamente relevante do seu discurso. São agora, com a vitória de maior de 2025, é que proclama mais abertamente a sua ligação a um destino de salvação patriótica, de identificação com Portugal e a sua “alma”. Antes era mais comezinho, tinha ideia do que é a simbologia mais popularucha. Já Jânio Quadros mostrou como é mais eficaz do que apelar ao brasileirismo usar coisas mais concretas, como “eu sou o homem da vassoura”.
O nacionalismo nutre-se com o tradicionalismo, e vice-versa. O neo fascismo, como o seu antepassado, luta pela defesa dos “valores morais”. Isto deriva para a recusa de muitos avanços culturais e sociais, mas com a ajuda de tiros nos pés de alguns exageros na ação e linguagem dos movimentos relacionados com esses aspetos morais: feminismo, direito à diferença na orientação sexual, comportamento “politicamente correto”, políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). É indiscutível que todas estas causas são importantes e necessárias, mas nem sempre bem conduzidas e enquadradas numa perspetiva global-
O tradicionalismo do neofascismo tem muito de instrumental. O “Deus , pátria, família” é um lema que anda muito longe de introvertido pelos seus programadores e muito menos de por eles ser respeitado na vida privada. É mais uma forma de captar adesões, granjeando simpatia acrítica por parte de quem até pode estar contra as propostas políticas do neofascismo mas nele vê o guardião da ordem, dos costumes tradicionais, do “respeito” e da “decência” (vê-se…). Apoia-se no senso comum no que ele tem de resistência à mudança e, na prática, na aliança muito eficaz com as correntes religiosas reacionárias.
A relação do fascismo clássico com a religião não foi uniforma. O nazismo era pagão, exaltando a mitologia germânica antiga; o fascismo italiano era laico mas convivendo bem com a Santa Sé, cuja situação secular regularizou; os fascismos ibéricos foram beatos. Agora, Ventura e Abascal fazem alarde do seu catolicismo fervoroso, mas não outros líderes neofascistas. Mais generalizadamente, a ligação mais forte, em especial nos EUA e no Brasil, é com o evangelismo.
O apoio do evangelismo ao neofascismo, na propaganda e no financiamento, foi manifesto na eleição de Bolsonaro e agora de Trump. Procurei dados sobre este fenómeno em Portugal mas não consegui chegar a uma conclusão. Parece certo que hás uma fracção importante da comunidade brasileira em Portugal que já vota e que deu um peso considerável a Bolsonaro, nas eleições brasileiras. Votaram Chega nas eleições portuguesas? E conhecendo-se o peso das igrejas evangelistas nas nossas comunidades brasileiras, que influencia exerceram?
A concluir esta secção:
A comparação das fases de uma situação que se repete suscita uma questão essencial: em que medida a diferença impõe formas novas de combate, face ao que se aprendeu (?) no passado e se continua a manter como essencial?
Terá de ficar para a continuação deste miniensaio, mas só depois do próximo capítulo, sobre o que ainda só abordei pela rama: as causas da reemergência do neofascismo. Até para a semana.
NOTAS SEMÍNIMAS
1
Até há pouco, estávamos habituados a o PCP, na noite eleitoral, ou nos dias seguintes, interpretar os seus resultados, em tendência continuada de descida, com omissão de erros próprios e apontando a culpa, vitimizando-se, a causas externas.
Desta vez, o PCP aguentou-se e foi o BE, com um descalabro que me preocupa como homem de esquerda embora crítico do BE, que retomou o discurso da desculpabilização. É certo que o BE reconheceu a necessidade de análise profunda dos resultados eleitorais, mas remete isto para um trabalho futuro sem levantar desde já hipóteses de trabalho que estão desde há muito na cabeça de quem, como eu, tem criticado fraternalmente o que são fragilidades patentes do Bloco, ideológicas e práticas, na linha da “nova esquerda europeia”, um projeto político cujas limitações são hoje patentes.
Um projeto com algum elitismo, de iluminados intelectuais, efetivamente desligados das massas populares (embora invocando essa ligação, julgo que com sinceridade), com muito ecletismo e a preocupação da diferença levada à defesa de causas “à la page”, fragmentárias e inconsequentes, coisas tão irrelevantes para a maioria das pessoas como a crepitação das “medicinas” alternativas (em que o BE foi manipulado infantilmente por Pedro Choy) ou a legalização da canábis. Dandyismo político!
A resolução da Mesa Nacional do BE, em 18 de maio, só aponta para fatores externos: “a ocupação do centro do debate político pelo tema da imigração; a reeleição de Trump; a jogada da AD, que adotou o discurso sobre estabilidade; a centralidade da questão da imigração; e o medo face à propaganda militarista (onde está este medo? Lamentavelmente, ainda não o vi).
Vou seguir com muito interesse o debate que o BE se propõe fazer, mas nem sequer estou certo de que passe das intenções para a realidade.
2
Ainda o BE e a resolução da Mesa Nacional. “Nos dias 13 e 14 de junho, no Porto, o Bloco de Esquerda recebe o congresso fundador da Aliança de Esquerda Europeia para os Povos e o Planeta, um novo partido político europeu que junta Bloco de Esquerda (Portugal), La France Insoumise (França), Aliança de Esquerda (Finlândia), Podemos (Espanha), Aliança Verde e vermelha (Dinamarca), Razem (Polónia) e Partido de Esquerda (Suécia).”
3
Gouveia e Melo é candidato e o PSD já oficializou o seu apoio a Marques Mendes. A direita vai dividida e ainda não se sabe o que fará o Chega. Depois dos resultados do dia 18, impõe-se uma candidatura de esquerda ampla com potencial ganhador. mas o que se vê é a hesitação do PS entre Seguro e Vitorino, que nem passarão a uma segunda volta. Está tudo louco?
4
Vem aí o mês do orgulho gay, com um calendário bem preenchido e marchas por todo o país. Tenho “mixed feelinas”. Julgo que há toda a razão para se ter orgulho de lutar pelos seus direitos, de ter a coragem – muitas vezes ainda é preciso coragem – para se assumir. Orgulho de lutador gay, muito bem. Mas orgulho simplesmente de ser gay parece-me tão deslocado como eu dizer que tenho orgulho em ser “straight”.
Notícia em destaque, esta semana:
“A Agência de Protecção Ambiental dos EUA confirmou a elaboração de um plano para eliminar todos os limites de emissões provenientes de centrais eléctricas alimentadas a gás e carvão.” (Público, 26 de maio).
Sem comentários.
CITAÇÃO
Espinosa, na Ética:
“Sedule curavi humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestare, sed intellegere. “
(Cuidava das ações humanas não para rir, não para chorar, nem para detestar, mas para compreender).
LEITURAS RECOMENDADAS
1. Já que hoje falo de fascismo e neofascismo, um artigo muito interessante e instrutivo sobre a estética fascista, de um dos nossos maiores (e poucos) historiadores da arquitetura, José Manuel Fernandes. Não confundir com o outro do mesmo nome!
2. E uma boa discussão sobre a história e natureza particular do imperialismo russo, no Monde Diplomatique (edição portuguesa), num tempo em que este tema é tão maltratado pelas propagandas putinófila e putinófoba.