#34 – O regresso da besta (I)
24.5.2025 E mais as secções habituais deste minimagazine: A abrir | Miniensaio | Notas semínimas | Trivia | Efemérides | Vídeo da semana | Evocações açorianas
Ao fim de uma semana de sobressalto político, surpreende-me que a esquerda partidária, mais movimento populares, associações, organizações comunitárias, até com outras entidades não de esquerda mas antifascistas, não tenham ainda conseguido uma forma prática eficaz de convocarem um Congresso Democrático e Antifascista, a dar início a um grande movimento unitário, juntando essas organizações àquela grande base popular que tem consciência do que pagará pelo regresso do fascismo, se lhe abrirem as portas.
A ABRIR
Em política, vemos todos os dias coisas com que não concordamos e até nos merecem oposição firme. Vemos coisas na fronteira cinzenta entre a “real politik” e a ética, de ambiguidade entre o que não é ilegal mas é imoral. Mas há coisas que vão muito para além de um mero juízo político, de concordância ou oposição.
Com certo intervalo, JD Vance e Putin condenaram o cordão sanitário oposto ao neofascismo, no primeiro caso em relação ao AfD, no segundo em relação a Marine LePen. Em ambos os casos, invocaram o “ataque” à democracia que representa a marginalização de milhões de eleitores.
Vance é um fascista manifesto e Putin é, pelo menos, um ultranacionalista autoritário. Políticos destes a invocarem a democracia é um caso de obscenidade política.
A propósito. É muito vasta a documentação que demonstra o conúbio entre o regime putiniano e a ultradireita europeia, com apoios e manifestações de simpatia em ambos os sentidos. Isto devia fazer pensar os putinistas ferrenhos que apareceram por cá na sequência da guerra da Ucrânia (dizer isto não significa, para mim, branquear o regime ucraniano e a sua senda irresponsável de provocações). Como é que se pode ver em Putin e no capitalismo selvagem que ele protege uma espécie de herdeiro do sol extinto da União Soviética? Já agora, leiam o que o PCP diz de Putin.
O REGRESSO DA BESTA (I)
No rescaldo da noite eleitoral, escrevi aqui um artigo que era um grito de alerta, mas já a pretender inspirar alguma reflexão, prometida para breve. É o que faço hoje e na próxima semana, provavelmente a ter de repetir por estes tempos fora.
Se não compreendermos como aparece, como cresce e porquê o inimigo, não o conseguimos combater. Parece óbvio, mas nem sempre se vê pôr-se isto em prática. É um combate necessário e urgente, com “o pessimismo da razão e o otimismo da vontade”. Talvez seja difícil conceber hoje razões para otimismo da vontade, que as forças estão fracas, mas não se pode ceder ao desânimo.
Ao meu “Não passarão!” responderam alguns que “já passaram”. Não é bem assim. O neofascismo está forte e a crescer entre nós mas ainda não passou o Rubicão, a conquista do poder. Nem é seguro que, a curto prazo, venha sequer a ter influência significativa na governação, por acordos formais ou informais com a direita tradicional. Evitar que isto aconteça, que o “não é não” passe a “mim é nim”, exige muita luta e uma vigilância muito ativa.
Não vou dizer nada de muito novo em relação ao que escrevi já há dois anos num capítulo inteiro do meu livro Utopia Hoje. Mau sinal – de que pouco se fez para travar o caminho da besta, apesar de bem identificada a sua natureza e de conhecida a sua dieta alimentar.
Dizer “a besta” é uma forma de fugir à questão terminológica: estamos a ver chegar novamente o fascismo? Ou é coisa relativamente diferente à superfície mas não no fundo, a justificar o termo neofascismo? Ou é mesmo coisa qualitativamente diferente, que não convém (na teoria? na prática?) confundir com o fascismo? O risco desta preocupação académica – intelectualmente importante como tal – é desviar do essencial, da ação prática. A não ser, o que é muito importante, que essa clarificação teórica seja determinante para a caracterização do novo (velho?) fenómeno e, como tal, condicionante da sua abordagem prática.
A atual ultradireita tem características essenciais do fascismo do século passado e que podemos esquematizar como as suas negações, os seus objetivos e o seu estilo.
As negações: tal como hoje, o fascismo foi mais um movimento de oposição, de negação, que de proposição, de avanço político e cultural – a negação antiliberalista, anticomunista, anticonservadorista. Uma mistura contraditória de retrocesso e de modernismo (o lado modernista que conquistou alguma intelectualidade, como cá Pessoa e Almada, Heidegger na Alemanha, Marinetti e D’Annunzio na Itália).
Os objetivos fascistas: ditadura nacionalista para totalizar a sociedade, transformar as relações sociais e criar uma cultura nacional autónoma assente nos mitos do passado.
o estilo fascista: simbolismo romântico na estética (Céline e Ezra Pound, a arquitetura brutalista, a música de Richard Strausse e Carl Orff), teatralidade, exaltação paganista e neo-nietzchiana do super-homem, grandes celebrações de massas, liderança carismática.
É óbvio que faltam hoje algumas destas características, mas fundamentalmente as secundárias, as de estilo. Aliás, nem foram essenciais; por exemplo, o salazar-fascismo, principalmente depois da sua adaptação ao mundo pós-guerra, dispensou o folclore fascista, que tinha aflorado na estética das comemorações centenárias de 1940 e nos pobres desfiles da Legião e daMocidade.
Também é marcante a diferença de perspectiva económica. O fascismo clássico tinha muito de antiberal, com algum controlo político da economia – embora ao serviço dos monopólios. A ultradireita de hoje – veja-se o “programa” do Chega, uma manta de retalhos – é ultraliberal. Entre muitas outras coisas, defende, à Millei, a privatização total do SNS e do ensino, o emagrecimento do Estado e a desregulação económica.
O que hoje se mantém, e que julgo poder justificar a noção de neofascismo, é:
A negação da democracia formal, mesmo sem declaração explícita de adoção de vias golpistas de tomada de poder; ou melhor, a utilização das aberturas da democracia para a instauração de um autoritarismo que, na prática, é a violação da democracia, como no caso paradigmático da Hungria de Orbán e muito da Rússia de Putin.
A invocação da ideia de que são os defensores de um cimento civilizacional de moral (mesmo com ladrões de malas), da boa ordem familiar (mesmo com acusados de violência doméstica), dos bons costumes (não haverá muitos dirigentes cheguistas muito machistas mas escondidos no armário?).
O nacionalismo manifestado como xenofobia e racismo, mas sempre com o velho truque de eleger um outro como bode expiatório dos males domésticos. Ontem foram os judeus, hoje os imigrantes asiáticos. Ironicamente, um dos maiores amigos de hoje do sionismo criminoso de Bibi e “sus muchachos” é o neofascista Orbán. E também que, cá na casa, os novos castanhos não digam uma palavra contra outros imigrantes, os oligarcas russos e brasileiros e os nómadas digitais ricos que estão a rebentar com o mercado imobiliário. E também-também, a cobardia dos Zeros, dos 1143 e quejandos, que entram pela Rua do Benformoso mas que não se atrevem a ir aos bairros de negros de segunda geração, como a minha vizinha Cova da Moura, que já começam a saber dar-lhes resposta e a construir movimentos como o Vida Justa.
A exploração demagógica da insegurança, do descontentamento larvar sentido mas não compreendido, do sentimento de perda de status social, do empobrecimento e da instabilidade de vida das chamadas classes médias (outra coisa que é necessário definir bem, no que tenho insistido, contra-corrente, porque o termo “classes médias” facilita a preguiça mental).
O obscurecimento das suas relações com os magnatas económicos, seus financiadores, mais importante hoje, a sua dependência de ter “boa imprensa”. Hoje, nem o financiamento até é o mais importante. Melhor é estar nas boas graças dos grandes grupos da comunicação social. O grande magnata democrata Balsemão deve andar distraído, sem ver como a sua SIC leva ao colo o nosso gauleiter tuga.
O elogio da incultura, em parte usando o efeito perverso da reação natural contra os excessos da cavalgada para o abismo da filosofia europeia do fim do século passado, irracionalista, individualista, fragmentária de todas as lutas globais, do pensamento sistémico.
As percepções ideológicas do fascismo
Agora, como no século passado, há a tendência para se ver o fascismo/neofascismo no quadro superficial da política, da ideologia. Por muito que valorize a esfera superestrural – filosófica, ideológica, cultural – entendo que ela reflete a dinâmica social e económica, embora sem o linearismo simplista da escola “marxista” oficial soviética (sou marxista mas não sou “marxista”; a minha dificuldade é mostrar que são coisas antagonicamente diferentes, porque a compreensão disto exige o estudo de milhares de páginas do velho mestre).
O que é então o fascismo, desse ponto de vista? O pensamento político liberal nunca abordou este tema e o pensamento oficial comunista simplificou-o, com a tese de que o fascismo é simplesmente a ditadura do capital em situações em que ele fica em perigo. É verdade, mas não é tudo, e já tinha havido antes (por exemplo 1848 e 1870) e houve depois (1973, 2008) crises que o capitalismo conseguiu vencer dentro do quadro liberal democrático.
Nos anos 20 do século passado, vivia-se uma crise de pós-guerra, agravada pelo efeito da gripe espanhola (para lembrar que nem tudo é só economia!). A crise caiu sobre uma situação social de impasse, com quase equilíbrio de forças. A grande burguesia tinha saído da guerra com a situação favorável da economia de guerra mas confrontava-se com um movimento operário muito forte. Os países vencidos, Alemanha, Áustria, Hungria, passaram por revoluções socialistas que, embora fracassadas, assustaram o sistema. A Itália, no lado dos vencedores, não capitalizou economicamente a vitória e, como os outros, confrontava a classe dominante com um pujante movimento popular.
No entanto, como nos mostra sempre a História, essa grande falstaffiana brincalhona e bêbeda, houve um canto da Europa que fugiu a esse esquema sócio-económico, Portugal. Nas Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos, usou uma expressão magnificamente expressiva para o Estado Novo getuliano: “o nosso pequenino fascismo tupinambá”. Também nós tivemos um pequenino fascismo tuga – se calhar o fascismo que merecemos.
A nossa grande crise foi principalmente política, de instabilidade e conflitualidade violenta, com um expoente que se pode marcar em 1917, com a entrada na guerra. Mas a resposta foi Fátima e o sidonismo (está em agenda para um próximo número), não o fascismo. Ele nem vem com o 28 de Maio, que foi só coisa clássica dos golpes militares e sem sair da lógica republicana e maçónica. O nosso fascismo foi construído pacientemente por um académico beato, à revelia das tendências “épicas” do nazi-fascismo. E implantou-se num país sem aquela situação típica de tensão de classes extremada. Um país rural, atrasado, com um capitalismo incipiente e um movimento proletário ainda em infância.
Ontem e hoje
A identidade de fatores objetivos, há um século e hoje, é manifesta, embora a um nível quantitativo de riqueza muito diferente. É a mesma crise, a mesma insegurança de vida económica e social, a mesma falta de perspetivas. Mas hoje temos de ver muitos novos fatores subjetivos, nas esferas ideológica e cultural, até a nível muito mais profundo, o da mentalidade. Se tudo fosse repetição, novamente o velho fascismo, talvez fosse fácil atuarmos a seguir a uma leitura de um livro de História. Infelizmente, não é assim.
A intriga dramática é a mesma mas o cenário é diferente e o discurso é diferente. Nesta primeira parte, discutirei o cenário. O texto já vai longo e terá de prosseguir na próxima semana. Tratarei então do discurso, seguindo-se a abordagem dos problemas mais imediatos; de onde vem a besta? Como dominá-la? Agora, permita-se-me alguma teorização de enquadramento.
O cenário. No tempo da ascensão do fascismo XX, o “sistema” ainda estava sob o império de ideias com algum lastro progressista. Havia consciência de classe. Acreditava-se nas grandes instituições e a imprensa assumia-se orgulhosamente como quarto poder democrático, com inerentes deveres éticos . Havia um código de conduta – weber-protestante – baseado no esforço, no trabalho, no mérito.
Pelo contrário, o neofascismo atual suga os sucos de uma mente coletiva deturpada e que, de tão pervertida que está desde há décadas, é incapaz de uma análise crítica da origem dos males que sofre e se deixa manipular por completo. Foi arregimentada para o neoliberalismo, hoje está a sê-lo para o neofascismo. O fascismo anterior foi uma reação ao proletariado, o fascismo atual é um prolongamento do neoliberalismo. O que antes era uma rotura, é hoje uma continuidade –· com aparência de novidade.
O neoliberalismo é a forma atual de configuração do capitalismo mas também, e talvez mais determinantemente, uma ideologia hegemónica. O mercado é dotado de uma inteligência absoluta; a intervenção do Estado vai contra essa regra; o mercado implica competição, afirmação individual e não pode aceitar limitações derivadas de valores “arcaicos e reacionários” (!) que travam a dinâmica da competição, como são tudo o que queira fazer valer a igualdade e a solidariedade, velharias de moralidade tacanha que não vê a maravilha da nova selvajaria.
Resumindo. Antes, tínhamos uma crise económica e social, com reflexo na instabilidade política; tínhamos um luta forte entre um capitalismo a querer recuperar forças dos estragos da guerra e um movimento operário e socialista muito forte, também fortalecido pela consciência do significado da guerra.
Hoje, temos de novo uma situação social e económica de crise, temos de novo a necessidade de afirmação do capital, mas por outras razões: as contradições internas e potencialmente destrutivas entre o velho capital industrial (hoje a aliança do petróleo, do imobiliário de Trump e do Silicon Valley de Musk e Zuckerberg) e o novo capital financeiro das 3G, que já está a tomar a propriedade – até há pouco era só a gestão – do capital industrial (se não entendermos isto, não compreendemos Trump e o trumpismo).
Não é só isto, que até já seria muito, como novo. É que, mais do que no século passado, acrescem os fatores superestruturais, subjetivos, de ideologia e de cultura. É certo que, vendo bem, eles também tinham peso nos anos 20-30 do século passado, mas praticamente só Gramsci, do fundo escuro do seu cárcere, é que soube vê-los, chamando a atenção para essa especificidade europeia ocidental que divergia da situação contemporânea da revolução russa.
O terreno ideológico-cultural em que germinou e agora floresce exuberantemente o neofascismo foi adubado por sucessivos jardineiros, numa equipa estranha, de gente até oposta. Aparentemente, não pode haver nada de mais oposto do que,
por um lado, a filosofia da “nova direita”, o irracionalismo mitológico, esotérico e “espiritual”, a teologia da riqueza de boa parte do evangelismo, o culto do individualismo competitivo do neoliberalismo;
e, por outro lado, à “esquerda”, a convergência que podemos datar simbolicamente como Maio de 1968 entre o pós-modernismo (não esqueçamos: com a sua ramificação portuguesa, tão celebrada até internacionalmente, do boaventurismo de Coimbra) e o radicalismo de raiz puritana dos meios académicos americanos que adotaram essa “teoria francesa”.
O pós-modernismo tem tudo para esterilizar a resistência intelectual ao neofascismo e para facilitar o seu irracionalismo primário e obscurantista: o subjetivismo e o privilégio da forma, da linguagem, da narrativa e do simbólico; o seu anticienticismo, que nega toda a herança do iluminismo; a negação do sentido de verdade; a sua conceção de multiplicidade dos poderes que, na realidade, esconde o poder principal, o da exploração de classe; a atomização de toda a complexidade humana; a falsa individualidade que, de facto, é a arregimentação de todos para uma excecionalidade individual em que a originalidade excêntrica segue afinal um figurino uniforme.
Na prática, o neofascismo agradece ao pós-modernismo e a todas as suas variantes que contribuem para a alienação e desnorte das lutas, mesmo a nossa variante boaventurista autodesignada como “pós-modernismo de oposição”. Era bom que se fizesse a crítica da sua escola, mais do que por via do #metoo, por mais importante que esta também seja.
O pós-modernismo prologou-se na prática pelo exagero delirante de muito ultraidentitarismo (pejorativamente dito “wokismo”), de muito “corretismo”. Boa parte da esquerda, principalmente a “nova esquerda” – Bloco, Podemos, Die Linke, a ala esquerda e académica do Partido Democrata americano, etc. – esqueceu a sua vocação primária – a luta proletária e popular –, esqueceu e deixou na orfandade boa parte do eleitorado popular, para se virar para pequenas camadas intelectuais, elitistas e maioritariamente pequeno/médio-burguesas que estão a despertar a compreensível animosidade de muita gente, mesmo de pessoas progressistas, de mente aberta, mas cujo bom senso é desafiado por toda esta marginalidade excêntrica de natureza intelectual e ética.
O pior reaçionarismo político, seja na sua versão de “autoritarismo respeitável” – até há quem use a designação aberrante de “democracia iliberal” – seja como neofascismo sem disfarce, vai aproveitar a situação social e económica, vai entra pelas fissuras do sistema político. Mas, principalmente, vai entrar pelas portas defeituosas dos nossos cérebros.
Isto conduz-me mais uma vez a Gramsci, que levou o marxismo a um alto ponto de “genuinidade” – contra a escolástica oficial – recolocando a questão central do determinismo, da relação entre a estrutura objetiva, sócio-económica, e a superestrutura subjetiva, ideológica e cultural.
Uma noção gramsciana essencial é a de hegemonia. Nas duas sociedades, a política e a civil, a classe dominante exerce o seu poder por duas formas , coerção e convencimento. A coerção é um mecanismo bem discutido pelos clássicos, Marx e Lénine, em relação à sociedade política, quando discutem a natureza de classe do Estado e o seu papel como organizador da sociedade em termos de domínio de classe.
Mas Marx pensou e escreveu 70 anos antes de Gramsci, 60 anos antes do apogeu do imperialismo e da guerra de 1914, muito antes da grande mudança tecnológica da primeira “instantanealização”, da eletricidade, da rádio, do automóvel. Nem esse génio podia prever o tempo em que Gramsci viveu, mass essa é a riqueza das grandes teorias, como a seleção natural na biologia: a sua capacidade de evolução adaptativo às novas realidades (quando os sacerdotes da religião não a convertem em dogma).
Por outro lado, Lénine viveu mais tarde, praticamente na mesma época de Gramsci – aliás, Gramsci, como fundador do PCI, foi um apoiante firme da Revolução de Outubro e um leninista na prática, mas como igual, sem o endeusamento que Estaline promoveu como caminho para ser ele próprio endeusado. Lénine compreendeu muito bem o mecanismo da coerção e do papel de classe do Estado, desenvolvendo a análise que Marx só tinha feito em termos gerais. Mas a Rússia de Lénine era muito diferente da Europa Ocidental de capitalismo mais avançado. O erro principal do movimento comunista foi não ter compreendido que a revolução russa tinha sido uma exceção, dificilmente exportável naquele formato.
A hegemonia. Isto significa que a classe dominante consegue controlar a(s) dominada(s) por as educar em conceções e valores que são contrários aos seus próprios interesses e que perpetuam o domínio. Para dominar, já não é necessário só coagir. É mais eficaz convencer, Olhemos um pouco para o nosso dia-a-dia. Não é o que se passa, desde a notícia do telejornal à nossa manipulação como consumidores, pela publicidade e as técnicas de marketing? Ou a nossa conspurcação mental inconsciente pelas redes?
Para instilar essa construção ideológica alienígena, usa múltiplos instrumentos: a escola, com destaque para a universidade como formadora dos quadros do sistema, a comunicação social, a religião, o pensamento coletivo das grandes instituições, como a judicial e a militar, etc. Ao domínio ideológico segue-se a sua consolidação, pela assimilação de ideias e valores pelo sentido comum – e o seu bom senso. Nesse passo definitivo, as ideias alienantes adquirem maior poder porque se tornam instintivas, indiscutíveis.
Não me parece que seja muito difícil acompanhar hoje estas posições de Gramsci – que, no entanto, continua a ser muito esquecido pela ortodoxia escolástica marxista. Quase podia dizer que são hoje banalidades. Mas há um aspeto novo e muito importante, que Gramsci não podia adivinhar – o controlo da mentalidade, para o que também contribui o avanço do conhecimento da psicologia. A minha querida ciência, minha vida, dá para tudo!
A meu ver, uma característica nova e importante da sociedade atual, de que se nutre o neofascismo, é isso mesmo: não usa só a manipulação ideológica, explora também a fragilidade da mentalidade coletiva.
Apesar de bem conhecidos, revejamos alguns conceitos. A hegemonia gramsciana referia-se à ideologia, isto é, à construção mental do homem comum que está imediatamente abaixo da filosofia, sendo esta um exercício erudito e mentalmente mais exigente em rigor e qualidade. Mesmo sem a elaboração filosófica, toda a gente tem alguma ideia, mesmo que pouco estruturada e refletida, sobre as questões essenciais da natureza humana, do seu sentido e destino, a relação com a sociedade e o meio natural. O bem e o mal.
Em muitos casos, isto virá primariamente da religião, mas mesmo assim integrada numa visão geral do mundo, da vida e dos relacionamentos que designamos como ideologia, um sistema compreensivo, inclusivo e partilhado socialmente de ideias e de normas que intuitivamente tomamos como “verdadeiras” e que nos guiam nas escolhas políticas.
O senso comum é o resultado da assimilação da ideologia dominante pela globalidade das pessoas, de forma acrítica, imediatista e inconsciente, determinando a sua forma de reagir instintivamente às situações. “É um pensamento genérico de uma certa época em um certo ambiente popular”.
Categoria diferente é a mentalidade. O termo pode ter vários significados, mas refiro-o aqui como o equivalente a “esquema mental”, como quando falamos de mentalidade racional ou irracional, científica, artística, empresarial, etc.. Trata-se de uma maneira específica e congruente de pensar e de julgar, um sistema mental de estruturas e processos psíquicos baseados na biologia, na linguagem, na educação e na cultura.
Ora é aqui que, insisto, reside a novidade dos nossos tempos. O “sistema”, sabe-se lá o que isto é, já não nos domina só ideologicamente. Tomou conta da nossa mentalidade e faz de nós robôs programados. E não há discussão profícua sobre o neofascismo que não tenha isto em conta.
(Continua na próxima semana)
NOTAS SEMÍNIMAS
No The Guardian
Foi enviada para a Lituânia uma unidade pesada de combate da Alemanha, com 4800 soldados e 200 auxiliares civis. É certo que não se põe em dúvida a solidez democrática da Alemanha de hoje, mas não é pacífico considerar que, na atual tendência europeia de militarização e rearmamento, a Alemanha é o país que tem capacidade financeira e tecnológica para liderar uma organização militar europeia. Antes NATO e EUA, futuramente CED (Comunidade Europeia de Defesa) e Alemanha?
2. ”Crise no Médio Oriente: Starmer, Macron e Carney ‘do lado errado da humanidade’, diz Netanyahu”.
Sem comentários… E logo Starmer, perseguidor de Corbyn e outros, acusando-os de anti-semitismo. Que injustiça!
Trump tentou forçar Harvard a anular a sua política de inclusão e a denunciar os estudantes quue se manifestam a favor da causa palestiniana. A Universidade recusou e Trump proibiu-a de receber estudantes estrangeiros, que será expulsos dos EUA. Harvard continuas a não ceder e pôs Trump em tribunal, por conduta crime contra a Constituição.
O narcisismo extremado cega e não deixa capacidade para medir forças. Apesar de todo o poder de Trump, afrontar a Universidade de Harvard é um suicídio político e sinal de uma conceção bruta do poder. Faz lembrar a célebre tirada de Estaline, sobre a influência política de um papa: “Quantas divisões [de exército] tem o Vaticano”?
TRIVIA
1
Limitado na visão, cada vez mais recorro ao táxi. Prefiro os motoristas silenciosos, até porque, recentemente, a maioria dos que metem conversa são propagandistas do Chega. Ontem tive uma exceção, mas com alguma coisa que se lhe diga.
O motorista era um homem politicamente interessado e até arguto, analisando bem os fatores de crise que alimentam o Chega pelo qual, muito evidentemente, não nutria qualquer simpatia. Mas, no meio da conversa, acentuou a questão da estabilidade governativa como muito sentida por muita gente e concluiu, para minha surpresa, que uma boa solução era meter o Chega no governo, por respeito a tanta gente que votou nele. Eu quero a democracia, o voto igual de todos os cidadãos, mas às vezes fico perturbado com as consequências práticas desse princípio indiscutível. O povo tem sempre razão?
2
Aprendemos na escola primária ou pouco depois, em História, que D. Fernando foi um rei infeliz, de curta vida, dominado por uma mulher perversa, mas que tinha tido uma grande iniciativa, a Lei das Sesmarias. Em 1375 vivia-se uma grande crise económica, a peste negra dizimava a população rural e havia fome, com os campos ao abandono. Os salários urbanos subiam com a mortandade e os camponeses aproveitavam, passando do campo para a cidade.
A lei das sesmarias obrigou os proprietários de terras a cultivá-las. Caso contrário, o rei tomaria posse da terra e entregá-la-ia em concessão a quem se comprometesse a cultivá-la.
Não seria bom uma nova lei das sesmarias, agora para a propriedade imobiliária de habitação?
EVOCAÇÕES AÇORIANAS
Começam hoje as festas religiosas mais importantes dos Açores, as do Senhos Santo Cristo dos Milagres, em Ponta Delgada. Não são as mais típicas e originais, posição que cabe às do Espírito Santo, mas são as mais grandiosas, mobilizando muitos milhares de pessoas, de S. Miguel, das outras ilhas e das comunidades da diáspora, principalmente da Nova Inglaterra e do Canadá.
A belíssima imagem é hoje transferida do coro do Convento da Esperança para a Igreja, numa pequena procissão à volta do Largo de S. Francisco. Amanhã é a grande procissão, que se prolonga por quilómetros, passando por todos os antigos conventos da cidade (uma data deles…) e regressando a imagem ao convento para mais um ano de descanso. Segunda feira é de festa mundana, regressados às suas freguesias os penitentes de “fora da cidade”, como s diz na minha terra. O campo de S. Francisco e a Avenida Marginal são então tomadas pela gente urbana, em feriado municipal, para passeio, cavaqueira e umas cervejas, que a Mello Abreu está ali ao perto. Era dia de delícia na minha infância, porque estava autorizado a terminar o último dedo da cerveja do meu pai, com umas pevides e amendoins.
O culto do SSCM é muito antigo e deve-se a uma freira do século XVII, Madre Teresa da Anunciada, que então professava numa pequena comunidade na Caloura. Tinha uma profunda devoção pelo Ecce Homo, e dizia receber visões Dele, com mensagens proféticas e com a promessa de curas e milagres. A história chegou a Roma e consta que teria sido o papa Paulo III a oferecer a imagem ao convento.
A imagem, representando Cristo flagelado e com a coroa de espinhos, o Ecce Homo, é uma excelente peça de arte sacra renascentista, de autor desconhecido. É um busto em madeira policromada, com uma comovente expressão de sofrimento resignado. É também um relicário, com a cavidade para as relíquias tapada por uma grande peça de prata de muito boa lavra. Em exposição, a imagem é coberta pelos ombros com uma capa bordada a ouro, de que há vários exemplares e adornada com outras jóias, de que se destaca a vara em prata e um extraordinário resplendor. O tesouro, fruto de oferendas de promessas durante séculos, é dew grande riqueza e pode ser visitado no convento.
O VÍDEO DA SEMANA
Extrato de uma entrevista do subdiretor do Expresso, David Dinis, à SIC. Surrealista, puro “nonsense”. Groucho Marx não se lembraria de melhor!
Muito bom João Vasconcelos Costa! Grande texto! Vou divulgar entre os meus amigos . Estamos todos precisando ler uma análise lúcida, informada e historicamente fundamentada depois do choque de domingo. Não sei se a esquerda vai reagir . Tal como nos Estados Unidos parecem adormecidos, salvo o Bernie. Parabéns e obrigada.
É muito urgente:
1 - Dar atenção ao conteúdo do vídeo com o David Dinis;
2 - Actuar em conformidade com as conclusões;
MR