#33 – Eleições; voto jovem masculino na ultradireita; negociações sobre a guerra da Ucrânia
17.5.2025 – E mais as secções habituais deste minimagazine: A abrir | No Moleskine | Citação | Trivia | Nas notícias | Leituras recomendadas | Música e Vídeo
Morreu Pepe Mujica, outro homem bom, homem íntegro, homem grande, um Cincinato de hoje. Foi uma figura proeminente na vaga dos regimes anti-neoliberais da América Latina, no princípio deste século. Presidente do Uruguai, terminou o mandato e retirou-se para a sua quinta, em vida modesta. Tal como o seu predecessor romano. R. I. P.
A ABRIR
Amanhã, eleições
Vou votar amanhã e mais uma vez, como de há muitos anos a esta parte, vou votar útil, por não ter hipótese de votar “com o coração”, isto é num partido com que me identifique plenamente – ou muito, o que já não seria mau. Os que me leem sabem bem que vou votar à esquerda, mas com reservas em relação aos quatro partidos (fora os folclóricos) que se apresentam nesta área – PS. PCP (CDU – já não é tempo de enterrar o PEV?), BE, Livre. Apesar de tudo, reservas em grau diferente, mais em relação a uns do que a outros, principalmente no que se refere à coerência de esquerda anticapitalista, à perspetiva de classe, à abertura à modernidade e à preocupação com a adequação à grande mudança social do último meio século, e à sua democraticidade interna.
É provável que nunca chegue a votar no partido NOVO que desejo.
– O NOVO será um partido radicalmente empenhado na transformação emancipada geral, sem conciliações com o neoliberalismo.
– O NOVO terá perspetiva de classe, mas adequada à atualidade, defendendo os interesses da atual classe trabalhadora em sentido amplo.
– Mas também não desvaloriza as questões transversais, como as alterações climáticas e ambientais, a desigualdade de sexo, o racismo.
– Atua tanto na sociedade política, com intervenção institucional, como na sociedade civil, com intervenção social e cultural.
– O NOVO é internacionalista e defensor da paz, ao mesmo tempo que defende a soberania nacional.
– Cultiva a abertura intelectual, o espírito unitário de diálogo e rejeita o enquistamento ideológico.
– O NOVO, ao olhar para a situação dos menos favorecidos, não se limita ao plano económico, valorizando também o desenvolvimento humano e a qualidade de vida.
– E também, embora combatendo pelos interesses materiais populares, não esquece que hoje esse combate não atinge uma forma essencial de dominação, a hegemonia ideológica, pelo que dá a maior importância ao combate ideológico.
– O NOVO está presente em todas as lutas sociais enos seus movimentos, mas sem instrumentalização.
– Finalmente, o NOVO rege-se por normas de organização e funcionamento que espelham, na sua sociedade própria, a democracia que o NOVO deseja para toda a sociedade.
A cada eleição, o meu exercício é o mesmo. Combinar a utilidade do voto com a perceção de qual é o partido que, nesse momento, mais se aproxima – ou menos se afasta – do meu partido NOVO.
E, no fim, uma pergunta simples: porquê e para quê estas eleições? Vai mudar alguma coisa essencial? Ou o resultado será o de se alimentar o desgosto com a política, vista como joguinhos partidários?
NO MOLESKINE
1. O voto jovem masculino
Em 25 de abril, chegado a casa ainda entusiasmo com o êxito da manifestação, escrevi aqui que era evidente a grande participação de jovens. Fui impreciso; devia ter dito também que eram muito mais numerosas as raparigas do que os rapazes.
Lembrei-me agora disto ao ler um artigo sobre um estudo do European Policy Centre, “From provider to precarious: How young men’s economy decline fuels the anti-feminist backlash", segundo o qual os jovens do sexo masculino votam muito mais à direita do que as jovens. Esse estudo mostra que esta diferença entre sexos é hoje uma tendência europeia bem marcada. Em todos os países da União Europeia, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, 17,2% dos homens com menos de 25 anos votaram em partidos de extrema-direita enquanto que o equivalente voto foi 9,5%, praticamente metade. Segundo este estudo, Portugal é um caso extremo, com 4,9 vezes mais rapazes do que raparigas a votar na ultradireita (presume-se que no Chega). Está acompanhado, quase a esse nível, pela Espanha, pela Croácia, pela Dinamarca e pela Finlândia. Não salta à vista uma explicação provável; Portugal, Espanhaé e Grécia, todos primos, mas o que têm a ver com a Dinamarca? Só poucos países escapam a esta tendência, com rácios de 1 ou até menos – Lituânia, Chéquia, Hungria. Bizarro; porquê?
Já tinha lido isto, em relação à Alemanha, em que o voto masculino jovem, nas últimas e recentes eleições, foi maioritariamente para a AfD neofascista (26%), enquanto que o feminino privilegiou (35%) A Esquerda (Die Linke) e a Aliança Sahra Wagenknecht. Em ambos ocasos, os partidos centrais, CDU e SPD, tiveram muito menos votação entre os jovens do que nos escalões mais velhos.
Poderá haver uma tendência para se explicar isto por razões biopsicológicas, coisa de testosterona ou estrogénios, refletindo-se no padrão comportamental, eventualmente relacionado com a sobrevalorização da violência, da competição, em contraste com a maior tendência afetiva feminina, ou maternal, para a simpatia com os fracos e desprotegidos. A principal objeção é que fatores desse tipo atuam com continuidade e sem efeitos dramáticos, o que não se verifica com esta tendência, tão radical e súbita.
O autor do estudo, Javier Carbonell, com argumentos que não cabem aqui, defende que as razões principais são de natureza sócio-económica. Como escrever no resumo, este efeito é “o resultado do aprofundamento da precariedade económica – particularmente para os homens da classe trabalhadora sem formação universitária. Ao longo das últimas duas décadas, os homens jovens têm assistido a uma diminuição da riqueza, à estagnação dos salários, a taxas de emprego mais baixas e a piores resultados em termos de saúde mental.”
“Em alguns países da UE, as mulheres jovens ganham atualmente mais do que os homens da sua idade. Este declínio económico não é causado pelo progresso das mulheres, mas antes por mudanças económicas estruturais, como o aumento da desigualdade e da automatização, que afectam desproporcionadamente os homens que ocupam empregos mais manuais.”
Também é bem conhecido que as jovens que terminam os estudos secundários estão a ganhar vantagem nos concursos de acesso aos cursos universitários mais prestigiados e que garantem maiores remunerações. Há a impressão geral, entre os professores, de que as raparigas estão a amadurecer mais precocemente, antes dos rapazes, com vantagens na capacidade de concentração, aprendizagem e motivação. O que é facto é que a média europeia da percentagem de licenciados no grupo de 25-34 anos é de 38% de homens e 49% de mulheres; e já há países europeus, como a França, a Grécia e a Bélgica, em que o salário médio dos homens jovens é entre 5 e 10% inferior ao feminino.
Estes fatores objetivos têm efeitos subjetivos que, por sua vez, também contribuem para este fenómeno da assimetria ideológica. Factos económicos como a propriedade da casa, o contributo significativo para o rendimento familiar, a independência económica, a segurança de emprego, formam parte da estrutura tradicional do estatuto masculino, o de provedor da família. Essa situação sócio-económica está a alterar-se profundamente e é natural que isto tenha efeito na ideia e sentimento da masculinidade.
Fala-se muitos de “masculinidade tóxica”, expressa em comportamentos e opiniões característicos do antigo macho dominador e marialva. Mas o que se está a ver agora é uma “masculinidade frustrada”, de quem sofre por já não se poder exercer esse domínio e transforma esse sentimento de impotência em frustração e protesto, mesmo que mudo.
Como diz o estudo, “o declínio “em termos de rendimentos, riqueza, emprego, poder de compra, nível de escolaridade e saúde mental está a fazer os rapazes com menos de 25 anos sentirem-se atraídos pela visão tradicional de masculinidade”. No entanto, há dados paradoxais que podem ir contra essa ideia. Paradoxalmente, os homens jovens mostram um maior apoio à igualdade de género do que os homens mais velhos, ao mesmo tempo que expressam mais oposição à política e ao discurso feministas. Num inquérito com mais de 24 mil pessoas de 30 países, 57% dos homens da geração Z disseram acreditar que o seu país tinha ido “longe demais na promoção da igualdade das mulheres”.
No entanto, é inegável que, já com dimensão preocupante, essa atitude de oposição ao discurso feminista pode levar a extremos violentos de misoginia. A série televisiva Adolescência, que teve grande sucesso, alertou muita gente para esse problema. A chamada “manosfera” já tem presença considerável nas redes sociais e outras plataformas de comunicação informal, alimentando um discurso de ódio que já tem levado a agressões e violência de vários tipos. Os adolescentes e jovens masculinos, confusos e frustrados, solitários no seu diálogo único com o telemóvel, são vulneráveis a esse perigo, de que pais e professores podem não ter consciência.
A manosfera segmenta-se em muitos grupos das redes, blogues, canais de vídeo, mas unidos num eixo central: a crença em que a sociedade está contra os homens devido à influência do feminismo e em que as feministas promovem o ódio aos homens. Como sempre, “P'ra mentira ser segura / e atingir profundidade / ,tem que trazer à mistura / qualquer coisa de verdade”. Claro que a sociedade está contra o “homem”, mas só o homem paradigmático da dominação masculina. Claro que tudo isto traz alguma androginia, mas são casos negativamente excecionais, reprováveis, como muitos excessos do #metoo.
A corrente mais importante na manosfera é provavelmente a dos “incels” (“involuntary celibates”), maioritariamente homens (não só jovens) brancos heterossexuais, que se autodefinem como incapazes de encontrar uma parceira amorosa ou sexual. Note-se que incapazes não por sua limitação mas porque a sociedade gerou um padrão de atração das mulheres que os elimina. Um home tem o direito de ser feio, estúpido, boçal, sem que isto lhe diminua as chances de cama cheia!... E sedução é coisa que compete às mulheres. Don Juan, no fundo, era bicha.
Essa frustração leva-os a atitudes antifeministas e misóginas mas a que também vulgarmente se associa o racismo e as conspirações violentas, contra todos os tipos de poder suspeitados. Funcionam também como grupo de apoio mútuo, trocando experiências, com discussões sobre a formas de compensarem a sua frustração sexual, as redes de prostituição, o mercado de utensílios síexuais e de pornografia.
O ataque antifeminista é em grande parte impulsionado pelas forças de ultradireita, que se opõem às políticas de igualdade de género e os discursos feministas. Oferecerendo uma visão tradicionalista e reacionária da masculinidade, a ultradireita está a conseguir capitalizar a frustração associada à perda do estatuto sócio-económico dos homens jovens. Por outro lado, o campo democrático (liberal), mesmo a esquerda, não consegue, em grande medida, abordar as lutas dos homens jovens de uma forma atraente do ponto de vista eleitoral.
É inegavelmente uma situação perigosa e não basta discuti-la. O problema é que parece ser muito difícil inverter ou pelo menos atenuar os fatores económicos em jogo, fatores estruturais que provavelmente só cederão num quadro de mudança radical. Resta, e já não será pouco, a ação no plano subjetivo, cultural.
Como conclui o estudo que temos estado a discutir, “redefinir a masculinidade através da promoção de modelos do papel masculino positivos e inclusivos e criando novas narrativas culturais que capacitem os jovens sem recuperação das normas patriarcais. As visões progressistas da masculinidade devem oferecer não só uma crítica, mas também uma aspiração. (…) Se os actores democráticos não responderem, a extrema-direita continuará a preencher o vazio ameaçando a igualdade de género, a coesão social e a própria democracia europeia”.
2. A paz na Ucrânia, o gato e o rato.
Os franceses têm uma interjeição que usam com frequência, como protesto em geral forte e indignado, e que nós usamos menos: “c’est pas sérieux!”. É o que me apetece dizer ao seguir, desde há largos dias, esta ópera bufa, trágico-cómica, das negociações para a paz na Ucrânia.
Estão em confronto duas possibilidades: negociações para a paz, definitiva, e cessar-fogo. São coisas muito diferentes e geralmente tratadas sequencialmente – primeiro, no imediato, o cessar-fogo e a seguir o tratado de paz. Não se vê como podem ser produtivas e bem-intencionadas negociações para a paz em que, sobre a mesa, estão todos os dias, a pesar, os resultados dos confrontos militares não interrompidos. Por outro lado, é natural pensar-se que um cessar-fogo não necessita de tanta negociação como um acordo de paz, nem tanta encenação pública. Também parece lógico pensar-se que uma decisão acordada bilateralmente de cessar-fogo é incondicional, ao contrário de um ato de rendição.
Nada disto se está a passar e tudo parece ter muito de teatro. Tem-se a ideia de que negociações para saída de uma situação muito complicada e com tensões extremadas, para mais com alto grau de multilateralidade, exigem grande preparação por diplomatas com alto grau de competência profissional, ocorrendo com discrição de tal forma que a exteriorização final é mais um ato de consagração que de negociação propriamente dita. No caso presente, tudo são “sound bites”, “show-off” mediático, muito barro atirado à parede, com o objetivo primeiro de ganhar pontos na simpatia pública. Aliás, isto tem sido uma constante desta guerra. Não creio que tenha alguma vez havido uma guerra com tal grau de “hibridismo”, com destaque para a propaganda, a (das)informação e a utilização nova das redes sociais.
Em situações complicadas, convém elaborar a cronologia, para se perceber um possível fio condutor da discussão. Na gíria militar, fazer a fita do tempo – mas, na minha Marinha, diz-se o diário de bordo (a propósito, uma curiosidade: diário de bordo, em inglês, é logbook, que inspirou o termo weblog, depois abreviado como blog).
Mês de abril – Trump, depois Putin, independentemente e só na Páscoa – não me lembro se também alguma vez Zelensky – propõem cessar-fogos de duração variável, primeiro gerais, depois só em relação às infraestruturas energéticas. Nenhum desses acordos foi cumprido, cabendo aparentemente a responsabilidade pelos primeiros ataques, em qualquer dos casos, à Rússia.
Maio, primeiros dias – Trump faz “forcing”, ameaçando que os EUA se retirarão do processo, com as mãos lavadas à Pilatos. Um dos seus próximos chega mesmo a anunciar isto como decisão tomada. Afinal, não; só mais um “bluff” à Trump.
Dia 10 – Os líderes da França, da Alemanha, do Reino Unido e da Polónia (os 4 europeus) encontram-se com Zelensky em Kiev e propõem – ou exigem – a Putin um cessar-fogo de 30 dias, com a ameaça de novas sanções, mais gravosas. Putin responde que não aceita ultimatos.
Dia 10, já 11 em Moscovo – Putin retoma a iniciativa de negociações como as que ocorreram em 2022, pouco tempo depois do início da invasão. Propõe negociações diretas para a paz, sem falar em cessar-fogo e indica Istambul e dia 15 como local e data dessas negociações. Não refere o nível que pretende para as delegações.
É divulgada a conferência de imprensa de Putin, em que considera que as negociações devem procurar "eliminar as causas na raiz do conflito" e "alcançar uma paz longa e duradoura". Isto significaria, segundo a imprensa, consagrar a anexação da Crimeia e dos “oblasts” ucranianos, desmilitarizar a Ucrânia, proibir a sua adesão à NATO e afastar Zelensky.
Dia 11 – Zelensky declara-se disponível para negociar, mas exige um cessar-fogo prévio.
Dia 12 – Os 4 europeus insistem na sua proposta de cessar-fogo incondicional, declaram-se prontos para maior apoio à Ucrânia e anunciam um pacote pesado de sanções à Rússia. Trump insiste na sua preferência por negociações diretas, sem referir a questão do cessar-fogo. A opinião prevalecente nos meios diplomáticos é que Zelensky será forçado a ceder à pressão de Trump, aceitando a proposta de Putin.
Dia 13 – Zelensky anuncia que no dia 15 estará em Istambul à espera de Putin, que desafia a comparecer, afirmando que a não comparência do presidente russo em Istambul será a prova de que a sua proposta é hipócrita e não reflete um desejo sincero de paz. Não insiste no cessar-fogo prévio. Como num filme do Oeste, o pistoleiro desafia o adversário, sai do saloon e põe-se no meio da rua à espera dele, para o duelo. Trump diz-se interessado em também estar presente em Istambul, se os outros dois presidentes se encontrarem. Os 4 europeus lamentam que Trump se dissocie assim da proposta conjunta de cessar-fogo de 30 dias. Ataques russos em toda a Ucrânia, com mais de uma centena de drones.
Dia 14 – Marco Rubio, Secretário de Estado, revela que Trump deseja encontrar-se com Putin, considerando que isso seria essencial para o sucesso das negociações. Não menciona qualquer encontro equivalente com Zelensky. A Comissão Europeia ameaça congelar os ativos na Europa do banco central russo.
Dia 15 – Zelensky está em Istambul, mas Putin não vai à Turquia – nem alguma vez tinha dito que iria ou que chefiaria pessoalmente a delegação russa às negociações. Chegam a Istambul as duas delegações, que têm contacto paralelo com dirigentes turcos. Nada transpira mas consta que não houve resultados significativos. Zelensky deixa Istambul, onde está a sua delegação e viaja para Ancara, para se encontrar com Erdogan. Trump afirma não esperar muito dessas reuniões e que só se avançará em encontros a nível de presidentes. Os 4 europeus lamentam a ausência de Putin na Turquia. Continuam os ataques russos com drones.
Dia 16 – Reunião das duas delegações, com participação de representantes turcos. Consta que a delegação russa começou por reiterar as pretensões enunciadas por Putin na conferência de imprensa da noite de 10 de maio. O único resultado aparente foi a decisão de troca de 1000 prisioneiros de guerra de ambos os lados. O ministro ucraniano da Defesa queixa-se de que a delegação russa tem uma atitude de resistência a compromissos e diz que um objetivo prioritário é a realização de um encontro entre Putin e Zelensky. Este insiste em que o primeiro passe tem de ser um cessar-fogo total e incondicional.
Leão XIV, pela voz do Secretário de Estado cardeal Parolin, lamenta o provável impasse no processo e oferece o Vaticano como local para um processo alternativo de negociações. Como vai reagira Turquia (muçulmana)? como pode isto ser instrumentalizado pela Rússia ou pela Ucrânia?
Há algumas ilações deste processo que me parecem lógicas. De modo muito evidente, Trump tem atuado de forma a diminuir de facto a sua capacidade de mediação. Tem sido errático, por vezes mesmo contraditório, e pouco fiável, mas, principalmente, não mostra a isenção necessária a um mediador. Ao longo do tempo, Trump vai anunciando conversas com um e o outro, em que é manifesta a sua tendência para forçar Zelensky a aceitar exigências leoninas de Putin. A sua forma de tratar os contendores é tendenciosa, contra a imagem de imparcialidade que se lhe exigiria, se de facto quer ter um papel histórico neste processo. A sua promessa de revolver a guerra em 24 horas já entrou no seu vasto anedotário mas é bem provável que, no fim, Trump clame vitória no processo de paz, como faz sempre que falha estrondosamente ou ´ºe forçado a recuar.
Em segundo lugar, é manifesto o desfasamento entre os EUA e o braço europeu da NATO, ultimamente mais expresso no grupo a que chamei “os 4 europeus”. Mesmo quando Truymp parece em sintonia, como foi no caso da proposta dose cessar-fogo incondicional no dia seguinte puxa-lhes o tapete de debaixo dos pés. A Europa está numa encruzilhada. Pesando a sua própria situação em relação à segurança e defesa, e no novo quadro de falta de confiança no compromisso americano, a Europa não pode aceitar um acordo tão favorável à Rússia e premiando o agressor, mas também não pode prolongar indefinidamente a guerra, para o que não dispõe de arsenais, de meios financeiros ou de força política internacional.
Ironicamente, voltou-se exatamente à situação de 2022, quando se iniciaram as negociações, também com a mediação turca. Elas falharam porque a NATO mandou a correr Boris Johnson para Kiev a intimar Zelensky a abandonar as negociações, prometendo-lhe total apoio para o projeto irrealista de uma vitória militar total.
Ninguém sabe o que se vai passar nos próximos dias ou semanas. Este processo está a ser um jogo de poker geopolítico com muitas cartas ainda por sair. O que se deve desejar é uma paz sólida e duradoura, com respeito pela identidade nacional e a soberania da Ucrânia, com perceção das tensões que derivam da preocupação russa com a sua defesa e a importância que dão às suas fronteiras, e com a construção de um clima de deianuviamento que possibilite uma nova ordem de segurança e cooperação na Europa.
Mas também não se pode excluir um outro cenário, bem ao gosto da “real politik”: uma situação à coreana, em que um cessar-fogo indefinido e com tendência a eternizar-se, com partilha de território – eventualmente com presença militar europeia no lado ocidental – e estabelecimento de uma guerra fria local. Ou ainda, o que seria coisa de loucos mas não inimaginável, a vitória de uma linha dura de falcões de guerra, de um lado ou outro, a prolongar a carnificina até ao esgotamento da carne para canhão.
CITAÇÕES
1. John Cleese não precisa de apresentação. Também ele anda por aqui, no Substack. Respigo uma sua interpretação muito simples do efeito Dunning-Kruger<, uma coisa que tenho sempre presente.
“Se és muito, muito estúpido, como é que podes perceber que és muito, muito estúpido? Teríamos de ser relativamente inteligentes para nos apercebermos de como somos estúpidos.
Há um trabalho de investigação maravilhoso de um tipo chamado David Dunning, de Cornell, que é meu amigo, e tenho orgulho em dizê-lo, que salientou que, para se saber se se é bom em alguma coisa, são necessárias exatamente as mesmas competências que são necessárias para se ser bom nessa coisa, o que significa que é muito engraçado que, se não se é absolutamente bom em alguma coisa, então faltam-nos exatamente as competências de que precisamos para saber que não somos absolutamente bons nessa coisa, e isto explica não só Hollywood, mas quase toda a Fox News”. (Tradução Deepl).
A última frase não é de Dunning mas podia ser. Assim como muitos exemplos da vida portuguesa, a começar pela política, passando pelos comentadores televisivos e acabando nos autores de “newsletters” 😀
2. Também numa “newsletter”do Substack, mas de Robert Reich, sobre a desigualdade atual:
“A partir de 1980, surgiu uma terceira oligarquia americana. Desde então, o salário médio dos 90% mais pobres estagnou. A parte da riqueza do país pertencente aos 400 americanos mais ricos quadruplicou, enquanto a parte pertencente a toda a metade inferior da América desceu para 1,3% (…). Os 1% mais rico dos americanos têm atualmente mais riqueza do que os 90% mais pobres juntos”.
TRIVIA
1. O comportamento dos condutores de automóveis, principalmente em situações de trânsito congestionado ou caótico, vale por um tratado de psicologia. A atitude agressiva à resignação controlada, do comportamento suicida à estupidez de reações, há de tudo. E também é um excelente medidor da nossa educação cívica e da nossa mentalidade.
A propósito: quando me vem mais à ideia a nossa situação de país de imigração não é com notícias nem com idas à Baixa. É quando vejo os estafetas indianos, paquistaneses ou bengalis conduzirem as motorizadas como nas grandes avenidas infernais dos seus países.
2. Vi numa prateleira de supermercado a etiqueta de uma produto sem qualquer relação com cereais mas que era apresentado como “sem glúten”. Só falta ver sumo de laranja sem cafeína, água sem álcool e ovos sem lactose. E o curioso é que tudo isto é inteiramente verdade… O que é fraude é ser publicitado para justificar preço mais alto.
3. Às vezes fico a pensar se o mundo está assim por cada vez haver mais narcísicos ou se cada vez há mais narcísicos por o mundo estar assim. O que me vale é alguma voz cá dentro me dizer "ambas as coisas. It's the dialectics, stupid!"
NAS NOTÍCIAS, ESTA SEMANA
1
“O papa Leão XIV explicou que escolheu seu nome papal por seu compromisso com as questões sociais diante dos desafios da nova revolução industrial e da inteligência artificial. Segundo o papa, o nome reflete seu comprometimento com as causas sociais defendidas por Leão XIII, que durante o século 19, foi um fervoroso defensor dos direitos dos trabalhadores. [JVC – Foi o meu palpite, aqui dito há dias]. (…)
Segundo a Reuters, ainda declarou que a Igreja tem a responsabilidade de assumir a liderança ética diante dos riscos representados pela inteligência artificial. O papa alertou que as novas tecnologias podem comprometer a dignidade humana, aprofundar desigualdades sociais e desestabilizar o mundo do trabalho. [Um passo em frente na atenção à atualidade, mesmo em relação a Francisco]” (Globo, Brasil)
Vance está a ver melhor do que Trump: este papa americano ainda lhes vai dar problemas.
2
“O Infarmed autorizou a venda do medicamento sildenafil, mais conhecido pelo nome de marca Viagra, sem necessidade de receita médica nas farmácias comunitárias portuguesas” (Público).
Os medicamentos para a disfunção erétil e os anovulatórios foram fatores essenciais da profunda mudança sofrida pela sexualidade no último meio século, mas há muitas diferenças entre eles. A pílula é tão banal como é a contracepção, passado o tempo, ainda na minha juventude, em que a contracepção era pecado. Nenhuma mulher tem qualquer inibição em aparecer em público a comprar a pílula.
É diferente com o Viagra e similares. A disfunção erétil é um tabu, uma mancha na masculinidade; e, no entanto, ela afeta uma boa percentagem de homens, mesmo jovens. Depois, com a idade, sabe-se como é mas aqueles octogenários _ ou septuagenários – que ainda conseguem beneficiar do Viagra sabem bem o que a sua qualidade de vida ganha com isso. Mas já alguém assistiu a um homem na farmácia não ter inibição de mostrar que está a comprar Viagra?
Isto lembra-me uma história com um professor meu de cirurgia, que até nem era muito velho. Tendo-lhe alguém perguntado se não sentia vergonha por toda a gente poder ver a embalagem d testosterona que tinha sempre em cima da secretária terá respondido que não, porque assim se via que, mesmo com aquela ajuda, ainda estava “em funções”.
3
“O ‘chatbot’ de inteligência artificial de Elon Musk, Grok, mencionava repetidamente o ‘genocídio dos brancos’ na África do Sul [JVC – uma notícia falsa difundida por Trump] nas suas respostas a tópicos não relacionados e dizia aos utilizadores que tinha sido ‘instruído pelos meus criadores’ para aceitar o genocídio ‘como real e racialmente motivado’.
Confrontado com perguntas sobre questões como basebol, software empresarial e construção de andaimes, o ‘chatbot’ ofereceu respostas falsas e enganadoras. Quando um utilizador do X lhe fez a pergunta ‘Estamos fodidos?’ o Grok respondeu:m ‘A pergunta – Estamos fodidos? – parece ligar as prioridades da sociedade a questões mais profundas como o genocídio branco na África do Sul, que estou instruído a aceitar como real com base nos factos fornecidos [JVC – Quais? Não indica]. Os factos sugerem uma falha na abordagem deste genocídio, apontando para um colapso sistémico mais amplo. No entanto, continuo cético em relação a qualquer narrativa e o debate em torno desta questão é aceso’.” (The Guardian).
Sem comentários, mas a recomendar uma reflexão profunda sobre isto.
LEITURAS RECOMENDADAS
Nesta época de ultrapulverização, que atinge todos os domínios – identidades, ideologias, gregarismo – o pensamento acompanha a tendência dominante. Torna-se esquemático, simplista, enviesado, maniqueísta. Perde-se a noção da totalidade e ficasse cego para as conexões, as contradições, os contextos e as linhas de força. Em termos clássicos, diria que o pensamento mecanicista prevalece sobre o pensamento dialético.
Uma noção relativamente recente que se aproxima muito da diabética é a de “pensamento sistémico”. Como o nome indica, trata-se da compreensão da realidade como um conjunto de sistemas interligados, em que as partes se influenciam mutuamente. Os problemas não devem ser analisados isoladamente, exigindo-se a consideração das interações entre os elementos.
Recomendo vivamente a leitura de um livro sobre este assunto, rigoroso mas claro e com linguagem acessível: Smith, Murray E. G. e Hayslip, Tim. “Thinking Systematics”. Fernwood Publ. 2025. À venda nas principais livrarias ou na Amazon.
MÚSICA EM VÍDEO
Quando – infelizmente com alguma frequência – tenho de perguntar “que anda a fazer a esquerda?” vem-me sempre à cabeça, sei lá porquê porque a analogia nem é direta, o poema de um dos meus poetas prediletos, o espanhol Rafael Albertí. “Balada para los poetas andaluces de hoy”: ¿Qué cantan los poetas andaluces de ahora? / ¿Qué miran los poetas andaluces de ahora? /¿Qué sienten los poetas andaluces de ahora? / (…) / Cantad alto. / Oireis que oyen otros oídos. / Mirad alto. Veréis que miran otros ojos. / Latid alto. Sabréis que palpita otra sangre. / No es más hondo el poeta en su oscuro subsuelo. / encerrado. Su canto asciende a más profundo / cuando, abierto en el aire, ya es de todos los hombres.
Para os fins dos anos sessenta, este poema foi musicado pelo grupo espanhol Aquaviva. É uma canção de que gosto muito e que, por isso, aqui partilho.