#32 – O que é uma mulher? (II)
10.5.2025 E mais as secções habituais deste minimagazine: A abrir | Eleições | Miniensaio | Notas | O Moleskine | Trivia | Da Histórias | Música em vídeo | Cartoons
A ABRIR
1. Há dias, vi uma pessoa sensível e sempre solidária, a pessoa mais empática que conheço, chorar em torrente ao ver num noticiário centenas de crianças palestinianas esquálidas atropelando-se e em gritos lancinantes por umas colheres de arroz cozido que uma organização humanitária estava a distribuir.
Já não peço que os dirigentes europeus chorem. Desafio-os só a demonstrarem que são mesmo seres humanos.
2. As potências imperialistas e/ou colonialistas sempre exploraram divisões e conflitos arcaicos entre os oprimidos para os distrair da luta principal. Etnias contra etnias, religiões contra religiões. Quando a Índia era a jóia da coroa de SM imperial britânica, o grande subcontinente albergava hindus e muçulmanos, numa tensão latente que o colonizador estimulava. Gandhi apelou sempre à união para a luta comum mas não teve sucesso e a antiga Índia dividiu-se na Índia atual e no Paquistão, por sua vez dividido mais tarde pela secessão do Bangla Desh. Na fronteira ocidental, ficou como abcesso Caxemira, onde de vez em quando o vulcão entra em erupção. Agora outra vez.
Um mundo que já se defronta com guerras inaceitáveis, Ucrânia, Gaza, Iémen, Sudão, agradece a esses dois países “irmãos” (ou pelo menos primos) que tenham juízo!
3. Há dois dias (e ontem na Rússia) celebrou-se o 80º aniversário da vitória aliada na II Guerra Mundial e o fim do tenebroso regime nazi (duas semanas depois do fim do fascismo italiano). Lamentavelmente, os antigos aliados não celebraram hoje conjuntamente a efeméride, separados que estão pela guerra da Ucrânia.
Mas o aniversário é também outro. Durante estes últimos 80 anos, toda a nossa vida decorreu na dependência de uma ligação umbilical com os EUA. Este ano fica como o ano do princípio do fim dessa dependência, dessa ligação adesiva em vários planos, geopolítico, militar, económico, da transformação tecnológica e da infoesfera. Daqui a outros 80 anos, quem com vier lerá o que os historiadores dirão sobre as consequências desta mudança.
4. O novo papa Leão XIV (o nome é significativo; uma atualização da doutrina social de Leão XIII?) disse que quer urna Igreja católica que ilumine as noites escuras deste mundo. Quem as não vê? Eu até usado a expressão pleonástica mas enfaticamente expressiva de “obscuridade escura”. Ele fala da sua igreja, eu da minha esquerda em crise.
À margem, mas a propósito: Salazar aliava toda a sua malevolência com uma enorme hipocrisia. No nosso tempo de liceu, já não me lembro em que disciplina, estudávamos a doutrina social da Igreja. Leiam novamente a Rerum Novarum e vejam se tem alguma coisa a ver com o salazar-fascismo.
E ainda: guio-me muito pela intuição de ler expressões faciais corporais. Leão XIV tem a expressão e o sorriso afetivo-inteligentes de um homem a quem gosto de apertar a mão e dar confiança de princípio. Leio-lhe integridade, inteligência, curiosidade, simpatia. Vamos a ver se não me engano. Sabem que eu até tenho um “talento” esquisito? Se consigo imitar a expressão facial de uma pessoa, sinto a sua personalidade. Olhem que normalmente não me engano!
ELEIÇÕES
1. Não faltam temas para debate na campanha eleitoral e é difícil hierarquizá-los. Mas um vem-me logo à ideia pelo seu significado estratégico: a posição de cada partido em relação à dinâmica armamentista na Europa e, em alternativa, a sua proposta de uma política de defesa soberana e ajustada aos interesses e problemas específicos de Portugal.
2. Os protagonistas dos debates fazem-me bocejar, tão previsíveis que são. Antes, era vulgar dizer-se que o político mais previsível era sempre o secretário-geral do PCP, fosse ele quem fosse, sempre a debitar a cassete.
Ora, nestes debates, é exatamente Paulo Raimundo o que mais me surpreende. Tem todas as qualidades técnicas para um debate, Para além da preparação, uma presença simpática, um aspeto simples mas convicto, uma atitude coloquial, um discurso muito articulado.
Mais importante, a meu ver, são os sinais subliminares. Não é que eu gosto disso porque prefiro a transparência, mas existem em todas as instituições pesadas, com muita inércia. Veja-se o significado subtil, só percetível pelos peritos, do discurso da Igreja Católica, do discurso papal. Muitos anos depois da minha passagem pelo PCP, creio que ainda sou capaz de captar algumas variações na melodia, coisas de só meio tom. Aposto que alguma coisa está a mudar com Paulo Raimundo. Mas como Francisco, morto antes de as intenções passarem à prática?
3. Eleições com resultados preocupantes foram as inglesas, com indiscutível sucesso do neofascista Farage e do seu Reform UK, que, sintomaticamente, não tem estatuto legal de partido mas sim de empresa, de que Farage é dono; ou não fosse ele um milionário. Nas diversas eleições em disputa, municipais e legislativas, andou sempre pelos 30% e, mais importante, liquidou em cada caso o Partido Conservador. Em hora de aflição do sistema, a direita “civilizada” cede lugar aos caceteiros fascistas.
4. Na Roménia, George Simion, admirador confesso de Trump e Meloni, que aparece em público com um boné MAGA, ficou à frente na primeira volta das presidenciais, com 41% (!) dos votos. O candidato de centro-direita que com ele passou à segunda volta só obteve 21% e o candidato social-democrata foi eliminado.
E ainda há por aí quem diga que o perigo principal para a Europa é Ursula von der Leyen e sus machuchos. Claro que também acho que são inimigos da Europa que desejo, mas serem hoje, no concreto, mais perigosos do que a ultradireita é sinal absoluto de cegueira política (porque não quero pensar que é obediência a um poder oculto). Este é tempo de todos termos os pés na terra. Um neofascista a ganhar 41% de votos? Nem Hitler quando ganhou as eleições.
O QUE É UMA MULHER? (II)
Continuando, para concluir.

O direito à autodeterminação
A principal pretensão do movimento trans é o reconhecimento do direito à autodeterminação do género. Isto quer dizer que a pessoa é homem ou mulher porque simplesmente se sente homem ou mulher, não interessa porquê, e pode mesmo não se sentir nem uma coisa nem outra, como veremos adiante. Assim, e sendo isto uma questão da vida privada, teria o direito absoluto de ver reconhecida, para todos os efeitos legais e sociais, essa sua opção de foro estritamente pessoal e não condicionada.
Para os ultraidentitaristas (vulgo “wokistas”, um termo com alguns perigos inerentes) é coisa indisctutível, no dogmatismo contraproducente que infeta alguma esquerda.
Admitamos esse direito, por exercício de discussão, mas nenhum direito é absoluto. O mais fundamental dos direitos, o direito à vida, é compatibilizado na prática com a legítima defesa e, lamentavelmente em ainda muitos países, com a pena de morte. Se fosse um direito absoluto, não haveria mortes em guerras. Também o direito à liberdade é compatibilizado com a justiça, as suas sentenças e as prisões. E por aí fora.
Sem margem para dúvidas, aceito o direito à identidade sexual/de género, mas com regulação, como aliás acontece em muitos países culturalmente avançados, como veremos adiante.
A seguir, há que discutir se é um direito radicado ou não no foro privado exclusivo. Por exemplo, parece não haver dúvidas de que a homossexualidade é matéria estrita de foro privado. Não tem qualquer efeito social, não interfere com a vida de ninguém. A transexualidade é um caso diferente. Os problemas práticos que suscita são bem conhecidos e até triviais: o acesso a serviços e instalações reservados a mulheres; a garantia da intimidade feminina; a coabitação em prisões, dormitórios ou instalações militares; as disposições relativas à proteção das mulheres contra a violência física e psíquica; aspetos específicos da saúde e assistência social; competição no desporto, etc.
Neste sentido, há convergência natural entre o feminismo e o movimento trans, como pareceria à primeira vista? Pode parecer que sim, aliados contra o patriarcado, como diriam os nossos ideólogos da escola pós-modernista de Coimbra. Não é bem assim:
Parte do movimento feminista, depreciativamente designada como TERF, “trans-exclusionary radical feminism" (feminismo radical trans-excluidor) opõe-se à inclusão social de trans femininos no meio feminino (para as questões práticas a que já aludi), mas fá-lo em defesa das mulheres de origem, para as proteger de agressões sexuais de pseudo-trans. Foi o ramo escocês desta corrente que conseguiu agora aquela decisão do Supremo britânico. Nem toda a reserva em relação ao movimento trans – não aos trans propriamente ditos, às pessoas concretas – representa uma atitude transfóbica, retrógrada, que é a dos transfóbicos reacionários.
Finalmente, e não menos importante, é preciso considerar a delimitação da capacidade de exercício desse direito, nomeadamente quanto à idade,, com garantia de defesa dos menores e outros incapacitados de juízo pleno. Lembro-me de um vídeo viral, há anos, mostrando uma criança de oito anos perante a Assembleia da região da Andaluzia, reclamando o seu direito à autodeterminação. “Soy una niña trans". Será que ela sabia mesmo que era?
A autodeterminação é vista por muitos como um direito natural primário, fundamental, mas pode ser considerada apenas como subsidiário, não obrigatoriamente, do direito que está hoje mais amplamente consagrado – o direito à proteção contra a discriminação com base na identidade de género e a punição específica dos crimes de ódio e de violência nesse domínio. A nossa Constituição consagra este princípio.
A autodeterminação coloca-se noutro plano, não tanto substantivo mas antes formal: o da forma pela qual é reconhecida essa identidade e os respetivos requisitos processuais. Como veremos adiante, o direito à autodeterminação da identidade de género está longe de ser reconhecido pela generalidade dos países da Europa, mesmo entre aqueles – praticamente todos – que garantem a não discriminação dos transgénero.
O género, questão cada vez mais complicada
Diz o senso comum que “as coisas tendem sempre a complicar-se, se não forem controladas”. Quando se começou a erguer o movimento gay, tudo era linear. Um número muito considerável de pessoas, de ambos os sexos vivia a sua diferença de orientação sexual na clandestinidade, sob opróbrio social e mesmo sob ameaça de prisão. Não faziam mal a ninguém, mas ofendiam a “ordem social”. A sua luta difícil foi bem sucedida na maioria das sociedades e a homofobia é hoje generalizadamente condenada. A reboque e aproveitando essa onda de sucesso, veio depois a questão trans, que tem ao menos um aspeto simples; refere-se à dualidade consagrada dos sexos ou dos géneros, se preferirem.
Digo simples, quando era só LGBT, porque depois tudo se complicou – e veremos num futuro próximo o que daí virá no domínio político e ideológico. Pensar hoje em resolver legalmente a situação dos transgénero invocando a teoria de género é abrir uma caixa de Pandora. Vão-se seguir todos os não-binários e vai-se entrar no delírio legislativo.
É que a identidade de género está a extravasar o quadro binário convencional. As teorias em voga consideram, como vimos, toda uma panóplia de identidades de género não binárias, enquanto que a escolha no caso dos trans é entre os dois géneros convencionais. Afinal, até agora, tudo é relativamente simples e tratável, na dualidade masculino-feminino. Pior é quando se pensa em três ou mais géneros. A fantasia humana não tem limites!
Na lista de identidades de género figuram casos tão curiosos como o aporagénero, que é a falta de referência a qualquer um dos géneros, mas ao contrário do agénero (sem género), há algum (qual?) sentimento subtil (!) de género, indefinido. O autigénero é o género próprio e exclusivo dos autistas e não consegui encontrar sequer um esboço de definição. Da mesma forma, o neurogénero é, por simples definição apriorística, o género relacionado com a neurodivergência (um conceito novíssimo-romântico da delirante medicina “wokista” — está tudo louco! — que justifica, por si só, todo um outro artigo, que escreverei). O género fluido, como diz o nome, é o daqueles (os/as) que têm um género oscilante, masculino uns dias, feminino noutros. Ficam tramados se procederem a alteração do sexo, num ou noutro momento. Ou ainda o pangénero, o das pessoas que sentem pertencer simultaneamente aos dois ou mais géneros, mesmo géneros imaginários, da natureza animal, vegetal ou mineral, canino ou de miosótis… Lembram-se do jovem bizarro com quem a maestrina discute, no filme Tár?
Há para todos os gostos e até parece que, em tempo de narrativas pessoais e de busca obsessiva da originalidade e diferença, cada um almeja distinguir-se por uma identidade única. Sinal destes tempos de trevas? E talvez também a mesma preocupação de originalidade por parte dos estudiosos “cientistas” que vão crismando essa variedade de identidades e como tal ficando na bibliografia “científica”.
A legislação internacional
Primeiro ponto: quantos géneros são reconhecidos oficialmente, já que sexos ninguém duvida de que são só dois? A maioria dos países, incluindo Portugal, só reconhece os dois géneros, masculino e feminino, mas alguns aceitam também o género X ou não-binário. É o caso da Alemanha (mas só para intersexuais biológicos), de Malta, da Nova Zelândia e do Canadá, além de alguns países asiáticos em que há tradicionalmente um grupo socialmente definido de indivíduos nascidos homens mas educados e estruturados psico-socialmente como mulheres. O que não consegui apurar é como esses países que aceitam um terceiro género indefinido lidam com os problemas práticos que já se põem com os trans: a que sanitários públicos vai um X? No futebol, concorre numa equipa masculina ou feminina?
Praticamente todos os países membros do Conselho da Europa já aprovaram legislação que garante os direitos dos transgénero, mas com variação considerável nos requisitos para a legalização da mudança de sexo/género.
Portugal aceita a oficialização da identidade de género por simples autodeterminação (ver adiante). Creio que se pensa frequentemente que esta é a tendência geral mas, de facto, só uma pequena minoria europeia, de nove países admite a autodeterminação plena do próprio, sem restrições. São eles, com Portugal, a Bélgica, a Dinamarca, a Islândia, a Irlanda, o Luxemburgo, Malta, a Noruega e a Suíça.
Na maioria dos casos, que não o nosso, a transexualidade tem de ser comprovada por diagnóstico médico e em alguns casos exige-se a conversão prévia por intervenção cirúrgica ou hormonal. É o caso, em relação à exigência de diagnóstico, de 27 países – todos os antigos países do Leste mas também a Áustria, a Finlândia, a Itália, os Países Baixos, algumas autonomias espanholas, a Suécia e o Reino Unido. Como se vê, alguns países que não são usualmente considerados como conservadores em questões de sexualidade e de género.
A legislação portuguesa
A primeira lei portuguesa sobre esta matéria data de 2011, a Lei nº 7/2011, de 15 de Março. Essa lei correspondia à prática ainda atual da maioria dos países europeus, como referi atrás, limitando o direito à mudança de sexo e de nome próprio às “pessoas de nacionalidade portuguesa, maiores de idade e que não se mostrem interditas ou inabilitadas por anomalia psíquica, a quem seja diagnosticada perturbação de identidade de género”. Era exigido o diagnóstico da perturbação “por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica (…) subscrito pelo menos por um médico e um psicólogo.”
A lei foi proposta pelo Bloco de Esquerda (BE) e aprovada com voto favorável do partido proponente, do PS, do PCP, do PEV e de um pequeno grupo de deputados do PSD. Os restantes do PSD dividiram-se entre a abstenção e o voto contra, juntamente com o CDS.
Anos mais tarde, o BE, a que se seguiram o PS e o PAN, voltou a apresentar um projeto de lei, agora muito mais radical e afastando-se da tendência europeia. A grande alteração, depois consagrada na lei aprovada – Lei nº 38/2018, de 7 de agosto – passa a ser o reconhecimento ilimitado do direito à autodeterminação do género, eliminando-se a necessidade de diagnóstico de perturbação do género. Como se diz no projeto, considera-se que o exame médico à identidade de género é uma violação da privacidade e um atentado à dignidade pessoal. A mudança de sexo/género passa ser mais uma questão de registo civil do que de bem-estar psicológico.
A outra inovação significativa é a possibilidade de mudança de sexo por menores com mais de 16 anos, autorizados pelos pais ou tutores. O projeto, depois de um percurso legislativo complicado, foi aprovado por unanimidade.
Das entidades consultadas, realço o parecer negativo do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que corresponde a algumas das minhas reservas em relação a esta lei, comparada com a de 2011, designadamente quanto aos seguintes pontos: a atribuição de valor de direito humano fundamental ao reconhecimento da identidade de género; e a possibilidade de um “exercício simples de vontade individual (…) desconsiderando a sua natureza pública”.
Concluindo e na minha modesta opinião (IHMO, como escrevíamos em tempos antigos da net, antes dos emojis)
A meu ver, tem havido algum grau de leviandade e de oportunismo político nesta questão, a par de alguma superficialidade ideológica de forças políticas que, involuntariamente, estão a dar tiros nos pés quando levam ao exagero caricatural as suas propostas, em princípio com todo o fundamento. Com isso oferecem armas aos seus inimigos. Compare-se, por exemplo, este processo legislativo com o que se tem passado, em cautelas e exigências, com a questão da eutanásia e do suicídio assistido
Todo este assunto se refere a uma esfera da vida que tem enorme carga emotiva desde tempos imemoriais. A sexualidade é central no homem, como em toda a natureza (descontando-se o mundo arcaico dos organismos assexuados). Todos os seres vivos obedecem a uma lei muito simples: alimentam-se para se reproduzirem, reproduzem-se para que os seguintes se alimentem. Esta marca biológica essencial está presente na epigenética, na psique, na cultura; permeia os mitos mais antigos e os textos sagrados. Desta forma, é uma irresponsabilidade legislar neste domínio sem a consideração – o que não quer dizer submissão – por todo este enorme lastro civilizacional.
A moda corrente trata estas questões como estruturais, definitivas. No entanto, a orientação sexual e a identidade de género podem refletir fatores sociais e culturais conjunturais, historicamente transitórios, que, no balanço “nature or nurture”, afetam o desenvolvimento da personalidade, de que a orientação sexual e a identidade de género são componentes essenciais. Da mesma forma, não me parece que se possa excluir que essa transitoriedade também ocorra a nível individual, como ambiguidade faseada do desenvolvimento pessoal. Por definição, uma situação transitória não pode ter uma solução definitiva.
Por consequência, a sexualidade tende a ser tratada culturalmente e politicamente com forte carga ideológica e obscurecimento ou até instrumentalização do conhecimento científico objetivo. Dou um exemplo flagrante, tirado de um projeto de lei: um estudo europeu de vários países que esse projeto refere, mas sem referência bibliográfica, calcula a disparidade de género (transgénero e não-binários) de vários países como sendo, em média, de 40%+, valor que ofende o senso comum. Mas os dados reais publicados, indicam um valor médio de 3%, em 30 países, e de 1% em Portugal. O senso comum aceita. “Est modus in rebus”, manipule-se mas não escandalosamente.
É leviano legislar em matérias com tal impacto, inclusive, à distância, na vida dos afetados diretamente e na sua possível evolução psíquica em relação a este aspeto, sem um estudo prévio rigoroso da situação, nomeadamente quanto: 1. à compreensão científica do sentimento de identidade de género; 2. à natureza e grau das variedades, com implicações médicas, desde casos não clínicos de simples comportamento ou exteriorização do género (comportamentos, vestuário, gestos, estilo de. articulação verbal) até à disforia com sofrimento psíquico; 3. à dimensão quantitativa (prevalência); 4. à identificação dos fatores estruturais e conjunturais, nomeadamente, nestes últimos e em particular na adolescência, a moda, o desejo de originalidade, o contágio social e grupal; 5. o conhecimento da perceção social; 6. o debate sobre a deontologia das intervenções médico-cirúrgicas para mudança de sexo; etc.
É perigoso legislar em termos de generalidade sem se cuidar previamente do preenchimento dos requisitos concretos para se obviar os problemas sociais práticos da mudança de identidade, já bem conhecidos.
E fica por discutir o problema específico da transexualidade em crianças e adolescentes e as suas implicações práticas para o ambiente escolar. Teria de ser noutra ocasião.
Mas deixo aqui uma provocação aos meus leitores, para reflexão. Vejam o gráfico acima, que mostra uma significativa variação da ideia de ambiguidade adequada sexual ou de género em relação à estrutura etária. 18% dos mais jovens têm dúvidas sobre a sua identidade sexual ou de género! Não será isto parte da sua dúvida geral sobre a sua vida, o seu lugar neste mundo de todos os escolhos?
Uma grande variação epidemiológica (em sentido amplo) temporal, geográfica, etária, etc., pode ter dois significados principais: ou um aumento da identificação dos casos (“awareness”) ou um aumento real dos fatores causais (incluindo o aparecimento de novos fatores). Que fatores? Biológicos, ambientais, sociais, culturais?
Voltarei a isto, não por bizarria pessoal mas porque penso que esta questão, no âmbito do ultraidentitarismo e, mais genericamente, do pós-modernismo ou da “French theory”, como lhe chamam os académicos americanos, desempenha um papel central no quadro global da crise do nosso sistema sociocultural.
NOTAS SEMÍNIMAS
1.
“Os ministros israelitas aprovaram um plano para capturar toda a Faixa de Gaza e aí permanecer – afirmam dois funcionários. O gabinete de segurança de Israel aprovou um plano para capturar toda a Faixa de Gaza e permanecer lá por um período de tempo não especificado, disseram dois funcionários, informa a AP.
O plano foi aprovado hoje e faz parte dos esforços de Israel para aumentar a pressão sobre o Hamas para libertar os reféns e negociar um cessar-fogo nos termos de Israel. Os dois funcionários disseram que o plano também inclui a deslocação de centenas de milhares de palestinianos para o sul de Gaza. Os funcionários falaram sob condição de anonimato porque estavam a discutir planos militares”. (The Guardian).
Condiz. Para construir o MAGA-projeto da Riviera do Médio Oriente, é preciso primeiro limpar o terreno.
2.
Não sei se há algum termo “qualquer-coisa-cídio” para quem mata a memória e o respeito devido aos mártires, às vítimas inocentes de crimes contra a humanidade. Se não há, deve-se inventar para os dirigentes israelitas que estão a atraiçoar a memória dos seis milhões de judeus vítimas do Holocausto. Mais. Se porventura há hoje um ressurgimento do antissemitismo, esses dirigentes e todos os sionistas ultras são os principais responsáveis.
Ao mesmo tempo, há que valorizar sinais animadores. Há dias, em “chat” de internet com um primo americano (“born in USA” de pai açoriano) bem de esquerda, soube que a corrente predominante entre os judeus americanos, principalmente no meio académico a que ele pertence, é de oposição a Netanyahu e de defesa de uma solução pacífica para o conflito israelo-palestiniano. Espero que o Johnny não esteja enganado.
3.
A China e a União Europeia acordaram em levantar todas as taxas e outras medidas que concirnam atualmente o seu comércio mútuo. Como discuti aqui, no #28 e no #29, acerca do sistema de segurança na Europa e as suas relações internacionais, espero que este seja um passo no sentido de aproveitar a atração (embora certamente controlada) de Putin pelo canto pateta de Trump. Deixando a China dependurada. Um eixo Europa-China, passando geograficamente por cima da Rússia? É compatível com os tempos de hoje, em que a geografia está na nuvem internética.
4.
Numa entrevista recente ao New York Times, o irmão do papa Leão XIV, John Prevost, professor reformado de 71 anos, referiu a proximidade emocional e ideológica do seu irmão com o seu amigo Papa Francisco e disse que ele partilhava as preocupações do antecessor de Leão relativamente à política de imigração dos EUA (notícia do Guardian).
O MOLESKINE
Um amigo questionou-me sobre uma coisa esquisita, isso de Moleskine que entra no título de uma secção deste boletim. Há muitos anos, era coisa que me acompanhava diariamente, no bolso dos casaco, um livrinho de capa preta, com um elástico característico a marcar as folhas, e onde apontava tudo o que a rua e as gentes, “sur la place / Chacun passe / Chacun vient, chacun va; / HojerDrôles de gens que ces gens-là!” (Carmen), me suscitam incessantemente como temas de conversa, umas vezes a merecer escrita, outras a alimentar p gozo da conversa com a morena. Hoje é o Notes do iPhone, ou o correio para mim próprio, que cumpre essa função. O Trivia deste boletim deve muito a essas observações, muitas vezes irrelevantes, quase fúteis, mas decorrentes de uma curiosidade infantil que me mantém vivo.
Moleskine é uma marca de cadernos de notas produzida pela empresa italiana Moleskine SRL, com vários tamanhos e formatos mas com uma imagem característica. Não há nenhuma boa papelaria que não os tenha em destaque, para venda aos seus cultores fiéis, como eu era. Foram celebrizados pelo escritor de viagens inglês Bruce Chatwin, que os usava para escrever os apontamentos com que alimentava os seus livros. Mas a lista de utilizadores célebres dos cadernos de bolso Moleskine, para apontamentos ou para esquissos, é muito mais rica: van Gogh, Matisse, Picasso, André Breton, Céline e Hemingway. Foi com este último que eu aprendi o que era um Moleskine.
TRIVIA
1. “Trump ordena reabertura da prisão de Alcatraz” (UpDay News), fechada há 60 anos. Como habitualmente, a decisão foi tornada pública na plataforma de rede social de sua própria propriedade, a Truth Social. É hoje o Diário da República lá no Trumpistão.
Acho muito bem, desde que não seja para a ralé dos criminosos, para negros ou hispânicos. Deve ser uma prisão especialmente concebida para todos os criminosos da corte de Trump, com instalações douradas para Trump, uma cela com uma lápide em mármore dizendo “Trump´s cell at Alcatraz Riviera”. Ao lado, decorada a prateado, a “Musk cell”. Uma das regras da nova prisão é a passagem a cada hora de um hino baseado em “I’m the best, I’m your big brother, I’m the strong guy who grabs them by the pussy”,
2. Está na moda, e a meu ver muito bem, a fritadeira de ar. Uso-a muito, ando a adaptar tecnicamente muitas das minhas receitas – como já fiz comm a Bimby - e recomendo-a. Também ouço muita gente a falar dela. Mas porque é que praticamente todos me falam da air fryer? Já está interiorizada, mesmo nas pessoas cultas, a naturalidade de usarmos termos ingleses? Sendo assim, vou oferecer uma air fryer à NOVA Medical School. Mas ao meu velho IHMT, que teima no arcaísmo de só escrever português, vou oferecer uma fritadeira a ar.
3. Uma máxima inglesa que se devia aplicar a nós: “Justiça demorada é justiça negada”.
4. O príncipe Harry, duque de Sussex, filho de sua majestade deo gratias, fidei defensor, etc., tenta equilibrar-se no arame do circo mediático de que é figura menor e inábil, pretendendo conciliar o inconciliável – o anacronismo monárquico e a mentalidade de “business” do pragmatismo americano, a que a duquesa está habituada. É um pateta patético, na linha de surrealismo social e “royal” de que também é expoente o seu tio, amigo e beneficiário de proxenetas.
“I don’t give a dime” (à Rhett Butler; vejam lá como eu sou culto… 😀) por estes assuntos frívolo-cortesãos, mas vale a pena, para algum gozo e riso, ler este artigo publicado no Guardian sobre a insustentável leveza da realeza. E da patetice de quem paga todo este surrealismo idiota.
Mas diga-se em boa justiça que os britânicos sabem transformar esse ridículo em coisa aparentemente séria e, para mais, fonte de receitas de turismo. Mas nós cá, com um reizinho a nível da Caras e só mediatizável como possível participante do Big Brother celebridades pindéricas ou outro “live show” pimba?…
4. “Seis em cada dez partos nos privados são feitos por cesariana. No SNS, também piorou” (Público). Não é preciso ser-se médico para se ver logo que isto é escandaloso. Muita coisa haveria como comentário, mas vou por um talvez menos comum. Estamos a ir contra a natureza. De certa forma, ela tem “mente”, decide, na lógica da evolução intrínseca ao nosso universo, físico, biológico, psíquico, social. Um dia destes, ela vai dizer-nos “basta! Vocês, humanos, foram criação minha, da natureza, mas eu não tenho instinto suicida e não vou deixar-vos que me matem”.
Tenho discutido muito esta sociedade do individualismo, mas tenho de começar a dar atenção a outro aspeto: a sociedade do hedonismo. Mas, por favor, não confundam, como muitas vezes se vê, o hedonismo com o meu muito querido epicurismo, que é coisa muito diferente
DA HISTÓRIA
“A Ucrânia é russa, a Rússia nasceu em Kiev”.
Um dos nossos mais fervorosos propagandistas de Putin e do seu regime escreveu há algum tempo que “a Rússia não vai atacar a Ucrânia de modo diferente do que tem feito até aqui (há quem ainda não tenha percebido isto, embora a explicação seja muito simples: a Ucrânia faz parte da Rússia, a Rússia nasceu em Kiev)”. Pois; como são todos russos, o irmão mais velho dá uns tabefes no mais novo russo-ucraniano, como até agora, mas não o vai atacar mais do que até aqui, não vá o irmão aleijar-se a sério.
Passando ao sério, vamos ver o que é essa tese de Putin – hoje convertido em grande historiador e teórico político a pôr Lénine no seu lugar de político errado – sobre a Ucrânia russa desde o Rus de Kiev. Bizarro é que estes pugilistas também se digam leninistas; ou melhor, gato escondido com rabo de fora, estalinistas.
No século IX, tribos eslavas, falantes de uma língua precursora tanto do russo atual como do ucraniano, estavam instaladas nas bacias do Neva, do Dnieper e do Don, mas o domínio desses territórios era exercido por vikings escandinavos, os varegues. Foi um príncipe varegue, Rurique, que criou o primeiro estado nessa região, cabendo aos seus sucessores, até ao século XIII, agregar pequenos principados eslavos num Estado único, o Rus de Kiev, que se estendia do Báltico até ao Mar Negro. A atual Ucrânia estava toda incluída nessa área geográfica, tal como a atual Bielorússia, mas bastante menos da Rússia atual. No século XIII, o Rus entra em decadência e desagrega-se em pequenos Estados senhoriais.
Entretanto, desenvolve-se outra entidade política, mais a leste, o principado de Moscovo, que está na origem do Império russo e da Rússia atual. Ao mesmo tempo, ganhava domínio no território do antigo Rus de Kiev o Grão-ducado da Lituânia, durante muito tempo associado à Polónia.
Durante séculos, o que é hoje a Ucrânia foi coisa com alguma ambiguidade mas nunca indiscutivelmente russa, globalmente. Os povos dessa região, cujo nome significas fronteira, foram-se culturando no seu isolamento dos eslavos a leste e a língua divergiu do russo. O território da atual Ucrânia esteve dividido durante séculos entre a Lituânia-Polónia, a oeste, e comunidades relativamente autónomas a leste, os cossacos do Don e do Dnieper. No século XVII, os cossacos revoltaram-se contra o dominador polaco da Ucrânia e, procurando o apoio russo, puseram-se ao serviço do czar, acabando por ser integrados no seu império.
No final do século XVIII, ocorreu a partilha da Polónia entre a Prússia e os impérios russo e austríaco e a Ucrânia é então dividida entre os impérios russo e austríaco, cabendo à Rússia a parte maior do território, incluindo Kiev e Odessa. O império reconheceu as especificidades ucranianas pelo tratado de Pereyaslav, mas nunca lhe concedeu a autonomia que o tratado previa. Assim, de todos os séculos de história ucraniana, só durante dois é que esteve ligada à Rússia.
Depois da Revolução de Outubro, a história é conturbada e é difícil resumi-la aqui, entre domínio vermelho, domínio branco e efémeros estados independentes. Lénine tinha perfeita noção da complexidade do problema e associou a Ucrânia soviética, autónoma, à Federação soviética russa, como primeiro passo da formação da União Soviética. É essa ato fundador de Lénine que hoje é tão criticado por Putin, o que devia fazer pensar os seus simpatizantes que, ao mesmo tempo, invocam Lénine.
Tudo isto pode ser lido em livros elementares de História. Passemos agora para um exercício comparativo, olhando para Portugal. Toda a área central do Portugal de hoje foi parte da Lusitânia, o nosso “Rus” inicial, mas a Lusitânia penetrava bem por terras da Meseta espanhola e tinha Mérida como capital na época romana. Viriato provavelmente nem era nascido no território hoje português, porque as suas lutas contra os romanos tiveram lugar na atual Andaluzia.
Então, à Putin, temos direito a toda a Estremadura espanhola e à Andaluzia, se calhar mesmo a toda a Espanha? Ou são os espanhóis que podem reivindicar Portugal, como parte antiga da sua deles Lusitânia? Ou a coisa resolve-se por outro critério: qual era a parte maior de território da antiga Lusitânia, a que é hoje espanhola ou portuguesa? Quem tem a maior parte fica com tudo… Mas que território lusitano, o pré-romano ou a província romana? Só um historiador do calibre de Putin é que podem resolver esta questão.
Ia passar para outro exemplo posterior de “legitimidade” histórica, o de Leão, Galiza e Portugal, primeiro condado depois reino. Mas isto já vai longo e certamente já perceberam qual é o meu ponto. Os leitores que se divirtam a desenvolver esse outro caso.
NOTA – Porque é que Putin nunca fala da Bielorrússia? Afinal, é muito mais “russa” do que a Ucrânia, pelos seus critérios históricos.
MÚSICA EM VÍDEO
Hoje vai uma pequena peça sinfónica tocada recentemente em Portugal pela banda da PSP. Chama-se "Tooth and Nail" e foi composta por John Costa, nascido nos EUA, compositor e professor de música na Universidade de Salt Lake City, EUA. Tem também nacionalidade portuguesa, filho de emigrantes micaelenses de quem ainda me lembro. O sonho açoriano da América! Pertence a uma família numerosa com avô, tios e primos muito dotados para a música, mas com uma exceção, de um primo. Eu! Que adoro música mas sou incapaz de pôr a laringe a entoar uma escala ou a reproduzir a melodia que tenho bem afinada na memória musical. Nas festas de aniversário, finjo que canto os Parabéns a você!
OS CARTOONS DO DIA
Quando vi isto, não acreditei, pensando que era brincadeira de alguém na rede. Depois confirmei que este exercício de imagem fabricada por IA foi mesmo publicada por Trump na sua rede privada Truth Social. Quantos votos de católicos perdeu com isto? Ou talvez não, porque nunca se sabe o que vai na cabeça dos MAGA fanáticos.
E já que se fala do Papa Leão, aqui vai outra, sem ofensa para os católicos e sem que se zanguem os meus amigos benfiquistas.
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