#30 – Trump, o revolucionário?…
26.4.2025 – E mais as secções habituais deste minimagazine: A abrir | Miniensaio | Combate à desinformação | Transcrição | Trivia | Leituras recomendadas | Música em vídeo
Como no ano passado, a Avenida da Liberdade transbordou com uma multidão a celebrar e viver na rua o espírito e a vontade de Abril. Pensei há um ano que fosse caso excecional, pela redondeza do aniversário e pelo susto dos resultados eleitorais. Enganei-me. Creio que a deste ano não lhe ficou atrás.
Repetiu-se um facto auspicioso e de discussão interessante. Das três gerações de Abril até hoje, a presença era principalmente da primeira e da terceira, avós e netos. Os da segunda geração foram herdeiros das conquistas de Abril, não sentiram grandes dificuldades, nunca estiveram motivados para lutas sociais e políticas. Mais ainda, sofreram o primeiro e mais eficaz embate da ideologia neolibeal, com o seu individualismo, o espírito de competitividade que lhes tira tempo para o que não for trabalho, carreira e sucesso. Os jovens de hoje – e ouça-se o excelente discurso do seu representante, no fim da manifestação – prometem marcar a diferença. A vida é mesmo oscilante e cíclica, de avanços e recuos.
Outra nota importante e animadora: a forte presença de imigrantes, muitos dos quais desfilando em grupos organizados e associações. Também muitas bandeiras da Palestina e faixas e cartazes a clamar pela paz. Nos tempos negros que correm, nem tudo são sinais de perigo e há vislumbres de esperança renovada.
IN MEMORIAM FRANCISCI
Com a morte do papa Francisco, o mundo perdeu um homem bom, um homem justo, um homem grande.
Sou ateu mas a Igreja católica e o seu chefe não me são indiferentes. Reconheço a sua enorme influência em múltiplos aspetos da vida e não me é igual que essa influência seja exercida com uma orientação reacionária e retrógrada ou sob u ma perspetiva progressista, como a de Francisco, mesmo que em matérias que dizem diretamente respeito mais aos crentes católicos, como a atitude perante a sexualidade ou o papel das mulheres em todos os domínios da vida.
Mas o papa é mais do que um líder espiritual religioso e Francisco exerceu um ministério moral de grande alcance, à escala mundial, que transcendeu a sua influência direta sobre os católicos. Não poupou palavras na defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos, na condenação das desigualdades e da selvajaria de um capitalismo predador, também em relação ao ambiente e ao clima, na denúncia da desumanidade que tantas vezes está na base das migrações e no tratamento dado aos migrantes. Pode-se dizer que “palavras leva-as o vento”, mas há vozes com o poder de exércitos.
E até o simbólico pode ser importante, e foi-o no caso de Francisco, o papa que foi o primeiro na história a escolher o nome de um santo com tanto significado como pobre de Assis, o papa que rejeitou os aposentos faustosos do Palácio Apostólico, que calçava sapatos vulgares e usava uma cruz peitoral de metal pobre em vez de ouro, que escolheu Lampedusa – a ilha de retenção dos migrantes – como destino da sua primeira viagem, entre tantos e tantos gestos pedagogicamente exemplares.
TRUMP, O REVOLUCIONÁRIO?…
O título parece absurdo e certamente que o leitor imagina logo que se trata de ironia. Mas não é bem assim, porque o que este miniensaio hoje traz à discussão é uma ideia que tenho visto formulada, com muitas nuances, de que Trump e a sua política terão como resultado prático positivo a destruição do sistema. Esta ideia encerra todo um complexo de questões, tanto práticas como teóricas, que exigem uma reflexão que não permite simplificações nem abordagens fracionadas. O tema é complexo e exigente em clareza de discussão, pelo que antecipadamente peço desculpa aos leitores pela dimensão deste texto, ultrapassando o habitual neste boletim.
Pode-se estar de acordo em relação ao facto objetivo, inegável, de que Trump introduziu no quadro político-económico global um fator de perturbação a nível de crise sistemática. Resta saber se é uma crise conjuntural ou se é conjuntural e como tal passível de reversão, como já tem acontecido ao longo da vida do capitalismo, como “doenças de crescimento”. No entanto, reconhecer a crise e as contradições que a ela conduzem tem significado diferente consoante a caracterização e valorização que se fazem dos seus agentes e também do seu resultado.
E há vários Trumps: o que está objetivamente a minar o sistema e o que está a otimilizá-lo em eficiência repressiva; o que está a promover o isolacionismo e o protecionismo e o que está a tentar reforçar com brutalidade o domínio imperialista (embora, para já, sem tradução militar); o que proclama a superioridade do modelo americano e o que dá alento a tudo o que é autoritarismo e neofascismo por todo o mundo; o que diz querer a paz na Ucrânia mas tudo faz para apoiar Israel
Isto leva à primeira questão, essencial, que se deve colocar. É um erro mental básico isolar um único fator mesmo que, estabelecendo-se a hierarquia, se considere como o mais importante. Que o trumpismo enfraquece o imperialismo americano e o seu instrumento militar, a NATO, é em si mesmo positivo para a luta socialista e anti-imperialista, mas essa mesma luta é fortemente prejudicada por muitos outros aspetos, igualmente marcantes, da política de Trump. Como na física, o que interessa na resolução de um problema que envolve forças múltiplas é para onde aponta o vetor da força resultante.
Falamos de Trump e do sistema. O que se quer dizer com sistema? Muitas vezes, é principalmente o bode expiatório, mal definido, de um conjunto complexo de mecanismos e processos que não conseguimos fazer equivaler a pessoas ou entidades concretas. É uma ambiguidade perigosa no caso que estamos a discutir, porque o efeito Trump sistemático conforme se esteja a pensar em termos políticos, económicos ou estratégicos, conforme se esteja a pensar em termos ideológicos ou de simples realismo político.
Vou tentar discutir o trumpismo e a sua ação sobre o sistema considerando este, com precisão, como o sistema do capitalismo, na sua fase atual de financeirização e globalização. Nesta perspetiva, o trumpismo é uma forma reacionária (em termos do processo de desenvolvimento do capitalismo) de conflito entre o capitalismo industrial e fundiário da fase precedente e o capitalismo financeiro e rentista que, em boa parte, passou a ser o motor principal do sistema. Sintomaticamente, Trump é ele próprio um representante desse capitalismo tradicional, ao contrário dos oligarcas modernos que se reveem mais nas elites políticas e intelectuais das duas costas americanas.
(NOTA – Discuti no Utopia Hoje (pág. 47 e seg.; pág. 173 e seg.) a génese e lógica da financeirtização e da globalização. Para lá remeto o leitor interessado).
O que é a “revolução” trumpista?
Que crise é a causadora do trumpismo? E que crise é causada pelo trumpismo? São duas perguntas simétricas cuja resposta nos revela o que é essa dita “revolução”.
De facto, não só “dita”. É uma revolução atípica, contra natura, mas realmente trata-se de um processo com profundas consequências políticas, económicas e de ordem internacional. E de forma alguma limitada aos EUA; claro que tudo o que se passa no país mais rico e poderoso do mundo tem efeitos globais, a todos os níveis, incluindo aquele que hoje, com rede de informação, é determinante – a ideologia e a cultura.
Digo que é uma revolução atípica mas não única. Ela traduz uma aliança espúria entre formas arcaicas do sistema, em luta pela sobrevivência face ao desenvolvimento do próprio sistema, e de grandes massas de oprimidos por esse mesmo sistema. Não é a primeira vez que movimentos populares se aliam a interesses arcaicos, numa espécie de pacto de Fausto. Aconteceu com os luddistas ingleses e, de forma exuberante, com a ascensão e apoio ao nazi-fascismo.
Isto pode ocorrer em situações de grande crise, quando os oprimidos não têm verdadeira autonomia ideológica. É que talvez os EUA nunca tenham passado por uma crise tão grave como a atual. À crise económica junta-se a depressão social, a desmoralização, a ausência de perspetivas, o sentimento da perda da “grandeza” e poder de outrora, mas ainda em vida da maioria dos cidadãos. O Midwest regrediu, grassa o desemprego, a classe média proletarizou-se e é nessa América profunda que o trrumpismo ganhou raizes, em boa parte porque foi esquecido pelos setores mais progressistas da vida política e cultural americana, desviados para um pseudorradicalismo alienante, em muito baseado no fracionismo identarista, paradoxalmente em contraste com a perda do sentido d identidade por grandes massas populares.
A raiva contra o “sistema” cresceu à medida que se acelerava o afastamento da esquerda, não só nos EUA , neste caso a esquerda liberal, como também na Europa, onde a social-democracia consentiu ou até participou na instauração do neoliberalismo e da política económica austeritária.
Neste vazio político e social instalou-se a ultradireita. Personagens como Trump viram-lhes cair no colo a oportunidade de agarrar o descontentamento e canalizar a raiva popular para a xenofobia, o nacionalismo e o autoritarismo, estimulando um clima de ódio e de mentira. Como disse atrás, a bandeira do anti-elitismo junta trabalhadores e milionários.
A revolução política
O capitalismo ocidental, em particular o americano, identifica-se estritamente com a democracia liberal, representativa. As expressões “mundo democrático”, com“mundo livre”, juntamente com “sociedade de mercado”, foram sempre etiqueta ideológica para designar o capitalismo. Também é certo que essa democracia, mesmo com todas as suas limitações, foi um progresso civilizacional, fruto de muitas lutas populares. Mais do que expressão e propriedade de uma classe, a burguesia que a imaginou, a democracia é hoje um património da humanidade, Tem de ser aprofundada, aperfeiçoada, mas nunca destruída. Quem viveu a opressão fascista sabe muito bem o que quero dizer.
Os americanos pareciam ter como dogma o seu sistema democrático como parte integrante e indissociável da sua sociedade nacional e até, pela sua doutrina de excecionalismo ou de “destino manifesto”, a sua universalidade. Ao contrário das velhas nações europeias, a nação americana nasce ao mesmo tempo que a sua democracia e a independência, para os “pais fundadores” vai de mão dada com ela na Declaração de 4 de Julho de 1776. “Consideramos estas verdades como evidentes por si próprias, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade.”
“E pur si muove!” O que parecia inimaginável (mesmo tendo em conta o acidente do jacksonismo - ver o #25 deste boletim) está a acontecer, com apoio da maioria da população americana: um regime autoritário, quase despótico, com desrespeito pelos princípios mais fundamentais da democracia e com violação da Constituição – com a complacência dos outros poderes.
O autoritarismo de Trump associa-se a mesquinhez e vingança. Quase todas as suas decisões abusivas se dirigem a pessoas ou entidades com quem teve litígios anteriores: procuradores públicos dos processos de que foi réu, polícias que investigaram o 6 de Janeiro, sociedades de advogados, jornalistas que o tinham incomodado. O quadro ditatorial completa-se com a purga nas instituições federais, a extinção de serviços, a anulação de políticas anti-racistas ou inclusivas, as deportações ilegais e, mais recentemente, o ataque a universidades, até mesmo a pressão sobre universidades estrangeiras, como ocorreu com as nossas.
Todo o edifício constitucional secular está a ser abalado, o que mostra que não era tão sólido quanto parecia, e os poderes legislativo e judicial a serem domesticados. O próprio sistema bipartidário, um dos pilares do edifício político americano, está a ser subvertido, com a desintegração do Partido Republicano e pela concentração do poder nas mãos de uma oligarquia que se alia a uma corte de serventes de Trump, transformando o eleitorado do partido numa massa facilmente manipulável.
É uma inegável revolução interna, no pior sentido, mas que também tem graves consequências para o mundo. Não só se desenha uma aliança objetiva, ou pelo menos tolerância, com regimes autoritários já instalados – só falta ver uma abertura ao Irão – como toda a ultradireita, em particular a europeia, ganha alento sob a asa simpática do trumpismo.
A revolução económica
Talvez ainda mais significativo, historicamente, seja o impacto da política económica de Trump. Apesar de alguma incerteza, pelas decisões contrárias e recuos de Trump, a guerra comercial parece instalada, principalmente com a China e, secundariamente, com os vizinhos, Canadá e México.
A guerra das taxas tem sido escalpelizada pela comunicação social e os meus leitores dispensarão grande discussão minha, pelo que deixo apenas algumas notas mais relevantes. É uma guerra inglória, em que, como salientado por quase todos os economistas, todos vão perder, numa escalada de taxação que pode chegar a valores fantásticos, como os 145% aplicados à China. Os preços subirão diretamente, no interior, e indiretamente também nos países exportadores, na medida em que também importam produtos americanos assim encarecidos. Para mais, podem ainda ter de retaliar com taxas sobre as importações americanas, aumentando a espiral inflacionista geral. A retração na procura e no investimento associará recessão à inflação, o cenário sempre temido pelos economistas.
Note-se que, provavelmente, Trump não se centra exclusivamente nas taxas como meio de proteção económica. As suas declarações posteriores, até em relação à China (antecipando negociações para uma redução da alta taxa já fixada), parecem indicar que as taxas, agora suspensas transitoriamente, serviram principalmente para forçar os outros países a negociações sobre aspetos mais variados das relações bilaterais, seja de natureza económica seria de natureza política e geopolítica, a favor da recuperação da hegemonia americana, cada vez mais ameaçada e contra a atração desses países pela China. Esses aspetos podem ser muitos e variando de país para país, mas é fácil dar exemplos: exploração de recursos, proteção de propriedade, favorecimento em relação a terceiros, compra de armamento americano (em especial no caso da Europa, agora “encarregada” de garantir a segurança da Ucrânia), etc..
Note-se também que não se trata generalizadamente de comércio internacional e dos seus desequilíbrios globais. Há aspetos específicos muito importantes, numa luta mais profunda do que a guerra comercial, que têm a ver com a dependência particular em relação às tecnologias de ponta e aos novos materiais der que elas necessitam. Como se vê com a questão das terras raras, a guerra é em grande parte pelo controlo dessas tecnologias e respetivos recursos estratégicos, estratégicos e altamente concentrados geograficamente.
Dito isto, falta referir o aspeto mais importante da política económica de Trump, em termos de significado mais profundo. É que ela representa o primeiro ataque até hoje sofrido pela globalização neoliberal, e um ataque vindo de dentro do sistema. O protecionismo económico e as limitações ao livre comércio vão contra o âmago da fase atual de desenvolvimento do capitalismo. É cedo para se poder prever o resultado deste conflito intracapitalismo, sendo possível que o subsistema avançado, da finança e da globalização, consiga derrotar esta ofensiva passadista que, além do mais, pode ser transitória se Trump aceitar ficar derrotado numa nova eleição – se ainda houver eleições livres; mas, em todo o caso, não é arriscado pensar-se que o conflito deixará sempre marcas fundas e poderá resultar em novas contradições de sistema com efeitos eventuais tardios.
E, já agora, preparemo-nos para que, a todo o momento, os pobres milionários que suportam Trump e o trumpismo, que lhes garantem financeiramente e pela sua comunicação social o sucesso eleitoral, comecem a pensar no que representa a visão económica de Trump. É que eles respiram globalização e odeiam entraves à liberdade de comércio e de movimento de capitais.
A revolução da ordem internacional
A revolução económica trumpista, mais a sua postura agressiva e prepotente, afeta o modelo vigente de ordem internacional, que assenta no multilateralismo – embora em contradição com a unipolaridade imperialista. A ordem internacional transcende o comércio internacional mas este é um fator importante.
Com o novo protecionismo norte americano, com medidas decididas unilateralmente, à margem de negociações bilaterais ou multilaterais, é abalado um elemento axial do ordenamento internacional estabelecido desde o fim da II Guerra Mundial. Mesmo com a guerra fria, o trauma da guerra propiciou uma atitude de diálogo e de promoção de entendimentos, simbolizada na criação da ONU e de outras agências internacionais. O novo isolacionismo americano (só aparente?) traz um retrocesso dessa dinâmica, já de si mesma frágil e contingente, em termos de concórdia internacional.
No entanto, ressalve-se que o multilateralismo é precário, porque– pelo menos em parte – vai contra a dinâmica capitalista da acumulação necessária do capital. Nas condições do monopolista, é possível a acumulação à escala mundial, mas haverá sempre outros estados que, na competição, lutam por impor a definição daquelas condições. Entram nos novos mercados exteriores, que permitem maiores lucros, e acabam por reduzir o grau de monopolização antes hegemónica. Com a baixa de preços pela competição e as margens de lucro, enfraquece-se a posição da potência anteriormente hegemónica. Ela só pode mantê-la pela força, pela unilateralidade dominadora do grande mercado mundial.
A manutenção dessa posição de domínio implica igual domínio no plano geoestratégico. Desenganem-se os que veem no trumpismo um contributo para o multilateralismo e para uma nova ordem multipolar.
A incerteza gerada pela guerra comercial, a desconfianças a instabilidade são consequências do unilateralismo que podem contaminar outras áreas das relações internacionais, com riscos incalculáveis.
A curto prazo, os efeitos mais manifestos da nova política trumpista relacionam-se com a atitude simpática em relação à Rússia de Putin (um homem no fundo inseguro que se julga forte admira e revê-se nos verdadeiramente fortes). Putin é suficientemente inteligente e hábil para tirar proveito da fragilidade psíquica de Trump, mesmo correndo alguns riscos e esticando a corda, como no caso das condições que está a pôr para um cessar fogo na Ucrânia.
A nova relação com a Rússia enquadra-se na noção da China como inimigo principal. Nisto, Trump parece ser mais clarividente do que os anteriores falcões antirrussos de Washington. De facto, a China não é apenas o grande concorrente comercial, aquele que conseguiu inverter a posição dois dois países quanto ao volume de exportações e ao peso relativo no comércio mundial. A seguir à II Guerra Mundial, os EUA detinham mais do que 20% ido comércio, mundial, hoje 8%, enquanto que a China passou de menos de 5% para 14%.
O que está em causa é mais vasto e profundo que o comércio mundial: é a posição que cada um dos dois países ocupa, e ocupará continuadamente, no sistema económico global, na repartição da acumulação do capital, no controlo da novíssima revolução tecnológica – na era da IA – e, muito especialmente, o papel na decisão internacional do trabalho.
A “amizade indestrutível” russo-chinesa forjada depois do banimento da Rússia pelo Ocidente é desafiada pela abertura americana a boas relações com a outra grande potência nuclear. No entanto, não é líquido que haja uma reinflexão radical na política de Moscovo em relação ao seu sistema de alianças. O que vem da América só tem prazo de garantia durante quatro anos e pode não compensar o que a Rússia ganha com o eixo Moscovo-Pequim, em acesso indireto a mercados, em cooperação na alta tecnologia, na exportação de produtos naturais, na ação conjunta no plano internacional, em relação ao Sul Global, e em particular no âmbito dos BRICS+ (se entretanto essa cooperação não for minada pela competição; “é a dialéctica, estúpido!”).
A posição de Trump em relação aos dois grandes conflitos também é elucidativa. A sua paz na Ucrânia pode ser muita coisa: simpatia pessoal por uma das partes, exemplo para o mundo da capacidade dos EUA como decisor das relações internacionais de terceiros, forma de recuo isolacionista com economia dos elevados auxílios à Ucrânia, ao mesmo tempo que responsabiliza e carrega financeiramente a Europa, outro dos seus principais alvos de animosidade. E é provavelmente a mistura de tudo isto. Já quanto a Israel, mandam muitos as as relações milionárias com o elite político-financeira sionista. Os trumpistas cá do burgo elogiam o “pacifismo” ucraniano de Trump mas calam a sua inegável hostilidade para com o povo palestiniano.
(NOTA – não abordo agora a questão das relações com a Europa, nomeadamente no que respeita à NATO, por já o ter feito nos números anteriores do Por Baixo da Espuma. Remeto o leitor para o #28 e #29).
O que representa Trump, subjetivamente?
Na ação política, não é indiferente a estrutura ideológica, a convicção e a motivação dos seus agentes. Desde um papel passivo, em que o político é simples peça da engrenagem histórica, até situações de afirmação de personagens excepcionais que causam inflexões aos fatores básicos, há exemplos de papéis pessoais diferentes ao longo da História. Em épocas e locais diferentes, Kerensky e Chamberlain estão um exemplo, Lénine e Churchill são o oposto.
Neste espetro, o que é Trump? Não me parece que haja uma resposta simples e por isso se compreende a divergência de opiniões de analistas e economistas igualmente argutos e capazes. Uns consideram Trump como um homem inteligente, consciente da situação nacional e internacional e portador de um programa nacionalista coerente. Outros entendem que Trump atua erraticamente movido por preconceitos ideológicos primários, que não tem estratégia e que procede sempre relativamente. Para os primeiros, ele é de facto um “revolucionário” embora reacionário e a defender objetivos retrógrados. Para os segundos, ele é uma marionete num jogo de forças da História de que não tem consciência.
Dialeticamente, Trump é ambas as coisas e também simultaneamente uma peça da engrenagem e um agente ativo de mudança. Ideologicamente, é primário e reflete essencialmente a mentalidade e os valores da sua classe, mas, como discutirei adiante, de um segmento particular dessa classe, da burguesia mais tradicional e desadequada à fase atual do capitalismo, a da financeirização e da globalização. Na sua prática, não ultrapassa politicamente essa sua natureza e os seus interesses, o que leva a situações inimagináveis – na lógica do próprio sistema e das suas regras necessárias — de confusão entre cargo e negócios pessoais.
Por outro lado, detém um poder jamais visto na História americana, o que o tornaria um candidato a líder histórico singularmente eficaz, não fosse a sua total falta de qualidades para isso. É inculto, e boçal, errático, mesquinho e vingativo, psico-sociopata, não tem uma visão “missionária”, é facilmente manipulável por quem lhe alimente o ego. A sua imprevisibilidade, em boa parte fruto da sua reatividade, pode afetar significativamente o seu próprio programa político – se é que o tem. Os avanços e recuos na guerra das tarifas são um bom exemplo. Pode também vir a causar-lhe dissabores porque lhe dificulta a gestão de crises, nomeadamente aquelas que mais provavelmente se porão pelo acumular ide contradições entre interesses diversos no seio da sua corte, necessária ao seu exercício despótico do poder.
Resumindo e concluindo.
Então, afinal, Trump é o político hábil, inteligente e com visão estratégica que alguns elogiam ou é ou fantoche manipulado por forças poderosas e pressões sociais que resultam da acumulação de contradições geradas pela globalização neoliberal? Num caso ou noutro, são os mesmos os efeitos estruturais – e também os culturais e ideológicos – mas as consequências na totalidade são muito diferentes.
Essa corrente funda aflora à superfície como Trump e o trumpismo, que a exprimem e alimentam mas que não a controlam, muito menos a determinam. Para o que foi o ponto de partida deste artigo, isto é o papel pessoal de Trump, parece-me que ele não deve ser tido nem temido como condutor político e ideológico do processo revolucionário/reacionário em curso (PREC… 😀). Embora não caindo no oposto, de o julgar um boneco de jogo, Trump é mais um seguidor ideológico de um processo histórico que o ultrapassa. Trump vai atras e não à frente da ideologia que está na base desta revolução reacionária. Não queiram fazer dele o que ele não é, o agente clarividente da destruição do sistema. Ele é parte do sistema, quer preservá-lo, embora numa perspetiva contra corrente. Seja como for, durante não sei quanto tempo, “da América nem bom vento nem bom casamento”.
Não se queira fazer de Trump um herói, uma personagem a ficar na História pela positiva, “a man for all seasons”. Ele é apenas um homem medíocre que teve a sorte de ter os meios de fortuna certos, de estar no lugar certo no tempo certo.
Todavia, não estou com isto a minimizar o perigo que Trump representa. Isso seria tão absurdo como considerá-lo o salvador, por ir destruir o sistema que também combatemos.
Quase certamente, ele nunca cruzará – nem o deixarão fazer – linhas vermelhas que ponham em risco fatal esse sistema que também é o dele. Uma ironia desta situação ém que o pretendido agente de uma imaginada destruição do sistema é ele próprio um bilionário e apoiado por outros bilionários.
Trump não quer nem vai abalar “o sistema”, isto é o capitalismo. Ele é só a reação contra um aspeto do capitalismo, o do seu atual estado de desenvolvimento. Como sempre, a ordem antiga ainda em vigência, ao “sentir” a decadência, faz tudo o que for necessário para se manter, mesmo que à custa da renegação de princípios e valores antes tidos como fundamentais. O que está por detrás de Trump é uma luta social – ou luta de classes – que se está a interpretar apenas como conflito geopolítico e económico.
Mesmo que se admita que o resultado tenha a ser o colapso do capitalismo (o que me parece longe de assegurado), é perigoso considerar que o derrube de um sistema traz obrigatoriamente uma alternativa de progresso, de justiça, de desenvolvimento humano. A História está cheia de exemplos de mudanças cataclísmicas de sistemas sócio-económicos, de modos de produção inteiros, que significaram, na totalidade (!) regressões humanas, embora no curso objetivo e inexorável do rio da História.
A queda do esclavagismo romano foi positiva do ponto de vista estrito da escravatura, mas fez passar o mundo civilizado do Ocidente numa idade de trevas. A queda do capitalismo na Rússia foi positiva para a vida prática de milhões de pessoas mas perverteu a doutrina que invocava, não instaurou uma democracia socialista mais avançada do que a burguesa no fim, pelo seu colapso, esterilizou parte significativa do movimento popular e dos trabalhadores.
Neste momento, que alternativa temos ao capitalismo? É verdade que a História não espera por que os homens tenham construído uma casa nova antes de ela destruir a casa antiga; mas o vazio que entretanto se cria pode ser dramático. Quem será o próximo hegemão – do grego “hegemon" (ἡγεμών)? Que tipo de sociedade tem ele neste momento? Que princípios e valores ele defende, provavelmente aplicando-os aos futuros hegemonizados?
Preocuparmo-nos com tudo isto de forma alguma significa derrotismo, pssividade ou um alibi para defender a preservação do capitalismo, por falta de alternativa; também não, no polo oposto, a desvalorização amoral do património humano, por determinismo no pior sentido, a aceitar como boa a inevitabilidade de processos objetivos. A posição correta, segundo entendo, é a de lutar sempre pela construção prévia e atempada de um modelo de sociedade alternativa, como aconteceu com o projeto liberal ilusionista do capitalismo incipiente germinado no feudalismo e que a burguesia levou à prática com a Revolução Francesa.
Que esta fase tão contraditória, por isso tão inquietante, nos lembre uma lição: as correntes do magma de História nunca param; o processo histórico marcha muitas vezes com grande aceleração. Como não somos só sujeitos passivos, temos de acelerar o nosso passo para não sermos engolidos ingloriamente pela torrente, perdendo haveres e valores.
TRANSCRIÇÃO
“Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. (…) A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35) encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. (…)
Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. (…) Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta..”
Francisco, exortação apostólica Evangelii Gaudium, 2013
TRIVIA
1. Uma escola do Texas proibiu o ensino da história, geografia, natureza, etc., do Estado da Virgínia, bem como a presença de livros sobre essa matéria na biblioteca escolar.
Motivo bem aceitável: as armas desse Estado americano, que datam de 1776, ofendem a moral pública, mostrando a imagem da Virtude vestida como amazona, de mama esquerda ao léu. É coisa que também me falta discutir aqui, em relação ao trumpismo – a sua relação com o fundamentalismo religioso (evangélico), o puritanismo (que excelente exemplo, o de Trump) e o conspiracionismo obscurantista.
2. “O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou esta terça-feira que os cortes orçamentais dos Estados Unidos estão a deixar as contas da agência da ONU no vermelho, obrigando-a a reduzir operações e a despedir pessoal. (…) “A recusa dos Estados Unidos em pagar as suas contribuições para 2024 e 2025, combinada com os cortes na ajuda pública ao desenvolvimento de alguns outros países, significa que enfrentamos um défice na folha de pagamentos para o biénio 2026-2027 entre 560 e 650 milhões de dólares“, disse Tedros Ghebreyesus aos Estados membros, de acordo com uma transcrição do seu discurso.” (Observador)
Recorde-se que não foi dada nenhuma explicação política ou económica para a saída dos EUA, podendo-se presumir que a verdadeira razão é o preconceito conspiracionista de Trump e de Kennedy Jr, em particular no que se refere à COVID-19.
3. Ventura deu hoje uma conferência de imprensa. Isto nada tem de especial, nem sequer os temas – ataque ao governo, como é sua obrigação, e manifestação de apoio ao direito de manifestação dos neonazis, ao pé da manifestação do 25 de abril, e com crítica aberta à carga da polícia.
O que já é mais digno de nota é que a CNN, pelo menos, interrompeu a sua programação para acudir à conferência de imprensa e, em rodapé, a CNN legendou “Ventura fala ao país”, uma fórmula que, até agora, só tinha visto usar para comunicações importantes do Presidente da República ou do Primeiro ministro.
LEITURAS RECOMENDADAS
Sobre a morte de Francisco:
“Jorge, Francisco”, Ladróes de Bicicletas.
"The war against Pope Francis”, The Guardian, um artigo muito instrutivo e bem documentado sobre a reação conservadora a Francisco.
"O desaparecimento do Papa Francisco como imagem do fim de uma era”, Pedro Mendes Pinto, no Público.
MÚSICA EM VÍDEO
Se tivesse saído o número de sábado passado deste boletim, esta peça musical era bem adequada. Em todo o caso, merece ser recordada, mesmo já depois do sábado de Aleluia. Depois de muitas vezes a ter ouvido em disco, pude ouvi-la ao vivo no concerto de Leonard Cohen em Lisboa, em 2012, na sua última grande digressão. Ela incluiu um concerto em Londres, onde foi gravado este vídeo.
À margem: tenho de deixar de ir aos concertos de velhas glórias, porque lhes dou azar. Primeiro foi Cohen, depois Aznavour.
Nota: é provável que na leitura por e-mail, em alguns dispositivos, este artigo surja cortado no final. Alguns leitores de correio eletrónico cortam as mensagens que consideram demasiado extensas. Se for o caso, no final estará o botão para ler o resto no site.
No 2º parágrafo do capítulo dedicado a Trump há um lapso na sua redação, «Resta saber se é uma crise conjuntural ou se é conjuntural e como tal passível de reversão, como já tem acontecido ao longo da vida do capitalismo, como “doenças de crescimento”» A primeira referência deveria ser "estrutural" e não "conjuntural"?
Também Pacheco Pereira, no seu texto semanal no "Público", constactou que na manifestação do 25 de Abril no Porto foi visível um salto poditivo na participação dos netos. Isto mostra a importância que deve ser dada ao trabalho que o Grupo das Escolas do GL-A25A tem vindo a levar a cabo.