#22 – Sobre o mundo de hoje (II) – que fazer?
22.2.2025 - E as outras secções habituais: A abrir | Miniensaio | Notas soltas | Citação | Momento de riso | Evocações açorianas | Música em vídeo | Cartoon
A ABRIR
Só recentemente, por razões fortuitas que depois contarei, é que dei por um nosso submundo, de novo lumpen. Merece discussão, o que farei quando tiver pronta uma compilação de dados exemplares. Sempre houve lumpen e o melhor caracterizado, também na sua importância política como suporte das aberrações que surgiram na primeira metade do século passado e agora regressam, foi o lumpen-proletariado, a escória, literalmente os trapos sujos. Mas, por analogia, também se pode falar de lumpencapitalistas, à Joe Berardo ou os pornorricos – uma designação bem achada do “ladrão de bicicletas” João Rodrigues. Agora, que o proletariado tem uma extensão mais ampla e também mais difusa, que os neoweberianos podem chamar de “classe baixa”, também mudou o lumpenproletariado.
Tenho manifestado frequentemente a minha repugnância por muito do que se passa nas redes sociais, mas realmente o meu conhecimento estava a ser muito limitado, praticamente só ao Facebook, com algumas visitas esporádicas ao Instagram. Este é particularmente ridículo mas acaba por ser relativamente inócuo se comparado com o que agora estou a referir. O Facebook até fica a parecer coisa séria e intelectualmente aceitável…
Estou a falar da “comunicação social” por vídeo, quer pelo TikTok (dizem-me que o preferido dos jovens) quer pelo lixo de “podcasts” rascas que infetam o Youtube. Antes da discussão que farei noutro dia, e para vos abrir o apetite, façam uma pesquisa com base em alguns nomes: Tiago Grilo, Más Influências, Lara Moniz, Diogo Faro, Numeiro, Catarina 4fun, Yolanda Tati.
Hoje deixo só uma lista de alguns pontos comuns muito evidentes de toda esta gente. São “influencers”, com milhares e milhares de seguidores e financiados por marcas de roupas e coisas do género. São mitómanos e narcísicos, os melhores do mundo. Propagandeiam teorias da conspiração, falsidades e “conselhos” fraudulentos, nomeadamente de pseudoterapêuticas. Têm horror confessado ao trabalho e só têm como objetivo ganhar “guito” por meios fáceis. Vendem psicologia barata, de autoconfiança, espírito positivo, e também de “pensa só em ti e agarra no que podes e te vier à mão”. Mais patentemente, são indigentes mentais, têm total falta de inteligência, de cultura e de bom gosto. Dão pontapés na gramática e pontuam o discurso com palavrões ou sinais do seu cosmopolitismo, “viste, baby, como se deve ir para um drunk?”, “hoje tenho um date” ou “by the way, isso curte-me”. Parece que ganham muito bem com essa atividade, gabando-se dos seus muitos milhares mensais (se calhar até nem é mentira…). Curiosamente, boa parte deles tem pronúncia nortenha.
Ah, já faltava o principal. Muitos fazem clara propaganda do Chega, declarando-se em muitos casos como seus membros ativos ou votantes. A esquerda, em particular a EàE (lembram-se do que quero dizer com isto?) faz muito mal se, também neste caso, abandonar para a ultradireita um terreno importante de combate. Já lá vai o tempo dos jornais militantes; o veículo de propaganda hoje é o telemóvel.
SOBRE O MUNDO DE HOJE (conclusão)
Que fazer?
Na primeira parte deste miniensaio, analisei; agora proponho. Npvamente sob a forma de teses, sem argumentação, mas cada uma a merecer larga discussão, aprofundada. Começo pelo abstrato para ir depois ao concreto da política.
Quanto às ideias e à teoria
Ao longo da História, há no Homem o mito da perfeição final, numa visão escatológica, de fim do mundo, nem sempre catastrófica. Este mito influencia teorias globais, teorias do futuro, em cada época: as elaborações de alianças entre Deus e os homens (ou o povo eleito); o cristianismo; a filosofia das luzes e o liberalismo; e o marxismou. Nenhuma das grandes teorias apagou inteiramente a anterior, assimilando sempre alguma coisa, mesmo que sob novas perspetivas. Hoje, em tempos de grande incerteza sobre o futuro, não dispomos de uma teoria do futuro. O marxismo ainda é a mais avançada teoria global mas precisa de ser atualizado.
Da mesma forma, o humanismo deve ser reelaborado. A noção do humano sempre teve de ter em conta a sua relação com a natureza e a forma de transformação do material, incluindo a tecnologia. Esta relação alterou-se nas últimas décadas e não só quantitativamente.Os instrumentospassaram a ter “domínio” sobre o utilizador, sobre a sua mentalidade, mesmo a sua vontade. Uma tarefa teórica imperiosa é a da caracterização ontológica do homem de hoje e a atualização do humanismo.
A teoria, prolongada por bandeiras e propostas concretas, deve refletir-se num discurso profético, simples e “comovente” (no sentido de “fazer mover com”), mobilizador e portador de esperança. “Desperta um povo disperso” (Espinosa) e atomizado para a organização da sua vontade coletiva.
Os fundamentos ideológicos e políticos
Não há uma relação estrita e inquebrável entre formações sociais e valores. A crise ou decadência de um modo social não significa que seja negativa toda a sua superestrutura cultural ou ética.
O capitalismo pretende identificar-se obrigatoriamente com a democracia liberal e vice-versa, ao mesmo tempo que procede de forma a cada vez mais se desacreditar a democracia, mesmo em abstrato. No entanto, a ideia da democracia e dos direitos humanos é uma conquista da humanidade, muitas vezes à custa de grandes sacrifícios. Nenhum projeto de futuro será válido se não assimilar coerentemente os valores adquiridos.
A democracia pode ter configurações práticas diversas, respeitando-se as liberdades, o Estado de direito e a cidadania esclarecida. Para efetivação de uma democracia real, não meramente formal, com conteúdo político, social, económico e cultural, o poder democrático não pode ficar limitado à sociedade política. A forma mais avançada de democracia, nesta fase, deve ser a de democracia participativa, com ampla capacidade de intervenção dos cidadãos na gestão da “res publica”, por intermédio das suas instituições da sociedade civil.
Inseparavelmente da democracia e condição da sua efetividade não só formal, é necessário manter sempre o cultivo de valores também ancestrais mas não ultrapassados, nomeadamente a ética política e o espírito de serviço público.
Face ao poder atual da ideologia neoliberal hegemónica, assimilada pelo sentido comum, o combate ideológico é hoje estrategicamente tão importante quanto a luta por objetivos económicos e sociais.
i. o combate à ideologia neoliberal;
ii. o combate à ideologia fascista que regressa, renovada, com a nova ultradireita;
iii. o combate às ideologias falsamente apresentadas como de esquerda e objetivamente divisionistas do movimento progressista, nomeadamente os ultraidentitarismos (ditos “wokismo”) e a cultura de cancelamento;
iv. a criação de formas eficazes de presença da EàE na comunicação social, formal ou informal e a sua ação na desmontagem da contrainformação reinante.As ideologias mencionadas no ponto (iii.) do parágrafo anterior merecem um cuidado especial. Em primeiro lugar, porque manietam a esquerda, ao apresentarem-se falsamente como de esquerda – e com parte da esquerda a dar alimento na prática a essa categorização. Os setores mais sólidos da EàE parecem temer o risco de serem associados às críticas reacionárias ao “wokismo” e ao “politicamente correto”. Em segundo lugar, porque, pelo ridículo e insensatez, afastam da esquerda pessoas honestas que, de outra forma, poderiam ser chamadas à solidariedade com movimentos identitários genuínos, de índole feminista, antirracista ou de defesa de minorias e do direito à diferença.
Evidentemente, a injustiça económica e social mantém-se e há períodos, como o atual, em que até parece agravar-se, com aumento das desigualdades. A luta tradicional dos trabalhadores e, em geral, dos desfavorecidos continua a ser central mas é preciso atender a novas realidades sociais e culturais, à dimensão subjetiva, ir ao encontro de novas aspirações pessoais, da qualidade de vida, da fruição dos lazeres e da cultura, do desenvolvimento da vida familiar, da vivência comunitária.
A ordem mundial
Os últimos três anos, com a guerra da Ucrânia, depois a ação criminosa do governo israelita contra os palestinianos de Gaza (e, me menor grau, também da Cisjoprdânia) e, no último mês, com a instabilidade exemplificada pelas intervenções disparatadas de Trump, mostram que a ordem mundial é um vulcão que estava latente, só com pequenas manifestações sísmicas mas que agora entrou em erupção violenta. A ordem unipolar do imperialismo americano que sucedeu à guerra fria está a desmoronar-se e é necessário desenhar e propor uma nova ordem alternativa. É perigoso deixar apenas evoluir a situação ou pretender-se a substituição de uma dominância por outra.
Não é realista defender-se no concreto uma ordem mundial de total igualdade entre os Estados soberanos. Haverá sempre esferas de influência mas o que se deve exigir é que uma multipolaridade naturalmente baseada na atração orbital movida por interdependências históricas, económicas ou culturais impeça a emergência de um monopólio – ou mesmo um novo bipólio – de hegemonia internacional.
A EàE deve ter como posição básica comum:
— a defesa da paz e da resolução pacífica dos conflitos;
— a criação de condições institucionais para que a ONU possa desempenhar um papel efetivo na manutenção da paz e na garantia de justiça nas relações internacionais:
— a oposição a todas as formas de imperialismo, sem distinção;
— o respeito absoluto pela soberania dos povos e dos seus Estados;
— o estabelecimento de um sistema mundial de segurança ou, pelo menos, de sistemas regionais, o que, no caso da Europa, implica a restauração do espírito de Helsínquia;
— o comércio livre, indispensável ao desenvolvimento de todos os povos e à atual complexidade das cadeias de produção, mas com regras internacionais que garantam a igualdade de tratamento e a soberania nacional.Na atual situação da Europa, com reflexos no nosso país, deve-se combater a crescente tendência militarista e o desvio de meios para o armamento, a submissão servil aos EUA, o isolamento perigoso da Rússia, e o alinhamento com eventuais ações provocatórias do tipo das que ocorreram na Ucrânia depois de 2014 – sem com isto eu querer dizer, de forma alguma, que se justificou a invasão russa, contrária a todo o direito internacional. Portugal deve também elaborar um novo conceito estratégico de defesa, no quadro do qual se deve colocar a questão da pertença à NATO.
Estratégia e ação
A sociedade em que vivemos está a avançar para uma crise civilizacional e uma alternativa politicamente viável tem de ser pensada quase de novo, sem que isto signifique a negação de todo um passado de luta. Mantêm-se os grandes fatores que são motores da história – nomeadamente a centralidade da luta pelo socialismo, uma sociedade do trabalho, sem exploração. Ao mesmo tempo, ela articula-se com um complexo de ações diversificadas, a vários níveis sociais, e com a consciência e mobilização de largas camadas sociais e que alargam o movimento socialista. É um projeto de unidade de base, promovendo novos poderes sociais, em particular na sociedade civil, com base na auto-organização social, na unidade das classes populares.
<velho novo>
A velha esquerda está a morrer e a nova ainda não nasceu. É vulgar falar-se de “renovação” da esquerda, mas a velha esquerda, a que está a morrer, não tem já condições mínimas para uma renovação. Está degenerada e cúmplice, ou está irremediavelmente presa a constrangimentos passados, ideológicos e funcionais, que a esterilizam, ou ainda refém de modismos inconsequentes. Não se trata, portanto, de renovar a esquerda, mas sim de a reinventar.
A relação de forças atual é desfavorável para a esquerda e em particular para o movimento dos trabalhadores. Usando a metáfora gramsciana, a fase atual da guerra é de recuo defensivo e a guerras de movimento cede lugar à guerra de posições, à guerra de trincheiras. No entanto, esta não é só defensiva, articulando-se com incursões bem calculadas, como luta de guerrilha. As ações ofensivas pontuais ou sectoriais exigem organizações mais determinadas e avançadas da luta política; mas a defesa exige a unidade ou pelo menos a convergência com setores político-sociais mais alargados.
O projeto de esquerda, com o objetivo do socialismo, deve transcender-se a si próprio, envolvendo-se num projeto mais alargado de combate pelos interesses gerais da sociedade, um projeto nacional-popular (uma noção gramsciana, a que voltarei noutro escrito).
O mundo de mudança em que vivemos obriga à atualização da definição dos objetivos centrais de luta. O eixo central da estratégia de uma esquerda reinventada deve ser o ataque àquilo que são hoje as maiores fragilidades do capitalismo, por exemplo, o agravamento das assimetrias (económicas e sociais, regionais, etárias, internacionais) e a pauperização de camadas até agora em posição social média; a exploração da natureza e a agressão ao clima; a globalização e as migrações; as contradições da automação, com as suas consequências no desemprego e na volatilidade da segurança laboral; o estatismo autoritário e a ideologia neoliberal, com erosão da democracia e o enfraquecimento das condições políticas (direitos e garantias) que possibilitam a luta dos trabalhadores.
É necessário reequacionar a estratégia de alianças. A um quadro complexo, corresponde um modelo de alianças igualmente complexo, flexível e de geometria variável. É diferente o bloco político unitário para a luta anticapitalista e o bloco mais amplo para enfrentar a ascensão da ultradireita. No campo social, as classes trabalhadoras são aliadas objetivas de parte do sistema capitalista ameaçada pela concentração oligárquica e pelo capital financeiro. É do interesse dos trabalhadores juntar forças com boa parte da pequena burguesia e das classes intermédias ou de intersecção (quadros técnicos e dirigentes, pequenos empresários, trabalhadores independentes, etc.), protegendo a pequena e média empresa e a produção nacional.
A nova classe trabalhadora, mais difusa, perdeu em grande parte a força da consciência de classe, característica da velha classe operária. Usando a terminologia clássica, é já uma “classe em si” mas ainda não uma “classe para si”. A sua educação pela luta e organização é uma prioridade da EàE e do movimento sindical. Da mesma forma, a integração plena dos trabalhadores imigrantes na organização política, social e sindical dos trabalhadores portugueses; a luta pela garantia de condições mínimas para a sua vida e integração; o controlo – com justiça e sentido de humanidade – da imigração ilegal e do tráfego humano; a total abertura ao asilo político e ao acolhimento humanitário..
É prioritário dar respostas específicas aos problemas específicos de todos os que são vítimas do atual modelo de capitalismo ou que sofrem exclusões sociais, para além da sua situação de classe, por exemplo:
— os desempregados, os que procuram o primeiro emprego, os precários e os explorados pelo “uberismo”;
— as camadas intermédias em perda de “status” social e económico;
— os trabalhadores intelectuais, cada vez mais limitados na sua capacidade criativa;
— os reformados e os idosos em geral;
— os jovens, em particular no que se refere ao emprego correspondente às suas qualificações, à habitação própria e às condições práticas das suas vidas como jovens pais;
— as vítimas de opressões diversas, como as mulheres duplamente exploradas, as minorias étnicas, as minorias de orientação sexual.Às respostas específicas deve corresponder um discurso e uma linguagem específica. Estas políticas dirigidas, colaterais à luta sócio-económica geral e com ela articuladas, são também necessárias para dar resposta ao descontentamento geral, relativamente transclassista, que é hoje um terreno de cultivo da ultradireita.
E até mesmo se deve falar também com os estabelecidos no sistema, os acomodados no egoísmo, as vítimas inconscientes da hegemonia ideológica; que não pensem que estão defendidos neste estado de coisas, que a multinacional que lhe dá carro e cartão de crédito também o manda para o desemprego aos 50 anos, que o seu sistema privado de saúde o descarta se se tornar muito dispendioso, que não podem estar certos de que os seus filhos vão ter as condições de trabalho e de segurança social que eles têm.
Nesta fase de ofensiva do capitalismo e de fraqueza relativa do movimento popular e da esquerda, é central a defesa contra o ataque violento que está a sofrer o Estado social de bem-estar, luta que, para mais, pode reunir as vontades de largos setores da população.
Há quem dê por condenados os partidos políticos, a serem substituídos pelos chamados “movimentos sociais”, frequentemente na perspetiva de um populismo de esquerda. É indiscutível que os movimentos, até espontâneos, têm desempenhado papéis de relevo mas geralmente sem sustentação e com muito de efémero, como o 15M na Espanha, o Nuit Debout e os coletes amarelos na França, o Occupy Wall,Street ou o Black Life Matter, nos EUA. Mas não julgo que se oponham aos partidos, Pelo contrário, o que tem faltado e é necessário é a sua articulação com os partidos, potencializando-se a luta de uns e outros.
Isto não significa negar que o sistema partidário esteja em crise e que os partidos da EàE estejam em queda eleitoral preocupante, provavelmente não apenas conjuntural. É difícil criar um partido, principalmente quando-se pretende que essa criação não seja só uma iniciativa de topo, centralizada e com riscos de personalização. Mesmo assim, é necessário fazê-lo, criar um partido alternativo de EàE. Alternativo significa uma mudança qualitativa, um posicionamento acima e não no plano geométrico do espaço político tradicional. Tem de ser um partido de tipo novo, na conceção de partido, na organização, nas práticas e na linguagem. É um “metapartido” que faz a ponte entre a sociedade política e a sociedade civil. É um partido que, não sendo exclusivamente de uma classe, tem uma perspetiva de classe na análise e ação política, com centragem na nova classe trabalhadora e na sua aliança com outras classes também subordinadas à alta burguesia. É um partido com um projecto global de transformação social aprofundando também a democracia e a defesa dos direitos humanos; com atenção à esfera subjetiva das pessoas, à compatibilização da riqueza material e da qualidade de vida; com respeito pela pluralidade ideológica da esquerda. É um partido com flexibilidade organizativa e com a ideia de que um partido reflete no seu funcionamento e no grau de democracia interna o projeto de democracia que pretende para a sociedade.
Não podendo ser-se exaustivo na enumeração dos aspetos táticos, deixo mais alguns exemplos relevantes, para além de todas as que ficaram referidas atrás:
— ação na base, movimentista e em convergência com forças diversificadas, tanto para a proposta e defesa de objetivos concretos como para o desenvolvimento da cidadania e a construção da democracia participativa;
— defesa da soberania nacional, no quadro crescentemente incerto das relações internacionais, com desenho de novas interdependências; e defesa da identidade e dos interesses nacionais no quadro da União Europeia, combatendo-se por uma União refeita como entidade democrática, pacífica, com respeito pela pluralidade e diferença dos seus estados-membros;
— importância da luta política orientada para o terreno da administração pública e dos seus quadros e trabalhadores, com especial atenção para os setores decisivos em termos da estabilidade do sistema – finanças, justiça, defesa e segurança;
— fomento de formas de organização da produção e do trabalho que prefigurem roturas com o sistema, no que respeita a relações de trabalho e a aplicações tecnológicas;
— “last but not the least”, tentar romper o bloqueio comunicacional, por criação de meios próprios (unitários e pluralistas) ou por uso eficaz das redes sociais e das novas plataformas da internet (“podcasts”, “newsletters”, fóruns, videoconferências, etc.).
NOTAS SOLTAS
Trump, Trump e Trump
1- O fim da guerra da Ucrânia
Nem sempre um bom resultado satisfaz plenamente. Depende dos efeitos secundários. Em si mesmo, o fim da guerra da Ucrânia, previsivelmente a curto prazo, levanta dúvidas e potenciais preocupações. Não as dos falcões que continuam a agitar o papão do invasor russo que chegará ao Cabo da Roca, nem as dos que choram pela afronta ao grande democrata Zelensky, o tal que nada tem a ver com a proteção cúmplice a neonazis, banderistas e quejandos. Nem sequer vou tecer considerações sobre a imoralidade de sair premiado o culpado direto pela agressão, pela violação do direito internacional.
Preocupa-me mais que este processo venha acrescentar ainda mais instabilidade e incerteza ao que já havia e fazia temer pela paz mundial. Desenha-se agora a possibilidade – eu diria probabilidade – de formação de um bipolo EUA-Rússia que muda radicalmente a situação. Há muita coisa que facilita essa formação, não por interesses comuns dos dois Estados mas principalmente por afinidades entre os dois presidentes: megalomania, sentido imperial, desprezo pela democracia e pelo direito, crueldade pessoal, conservadorismo moral (mas não praticante, no caso de Trump). A grande diferença é que Putin parece ser racional, frio, coerente e previsível, enquanto que Trump é sociopata narcísico, emotivo, ignorante, disparatado e imprevisível.
Ambos sabem que já é muito difícil voltar-se à unipolaridade e que, no triângulo que fazem mais a China (porque isso do Sul Global é treta se neles se incluir Rússia ou China), vence uma aliança a dois contra o terceiro. E claro que op verdadeiro inimigo dos EUA é a China, sendo a Rússia apenas a ideia remanescente de um papão que alimentou durante décadas o apoio popular dos americanos às suas presidências. Não é fácil desfazer rapidamente a ideia enraizada do inimigo.
O realinhamento EUA-Rússia tem mais lógica do que a aliança conjuntural Rússia-China constituída fundamentalmente para compensar as sanções económicas e reforçar a ação de atração de apoio à Rússia por parte do Sul Global. Que vai fazer agora a China? É altura para a Europa de compensar este isolamento da China face ao arranjo dos outros dois. Ambos, Europa e China, só têm a ganhar com a sua cooperação comercial e tecnológica.Por outro lado, a desfeita de Trump à UE, recusando-lhe um papel nas negociações e ao mesmo tempo atribuindo-lhe unilateralmente o encargo de garantir a segurança da Ucrânia e o apoio financeiro dá pretexto para uma posição de maior neutralidade em relação à Rússia, permitindo, pelo menos, a normalização da situação energética da Europa. No entanto, para tudo isto, falta uma coisa essencial: inteligência e coluna vertebral dos dirigentes europeus.
2. E Israel?
Não seria agora coerente que Trump tivesse uma conversa telefónica com Khamenei e ligasse depois ao seu mainato Bibi a dizer-lhe que América e Irão vão negociar a paz em Gaza? Não sei é o que seria feito do projeto imobiliário de Mar-a-Lago II, perdão, da Riviera do Médio Oriente.
3. Quem começou a guerra?
Diretamente ou indiretamente? Provocações e respostas encadeiam-se e nessa cadeia pode-se parar onde se quiser para definir a culpa. Assim, para mim, o culpado da guerra da Ucrânia foi Bjorn Bjornsen, um viking distante, ou esse com outro nome, quee um dia se meteu num dragar com um bando de ruços e navegou pelos rios entre o Báltico e o Mar Negro, colonizando o Rus, hoje a Ucrânia. Diria a Philomena Cunk que chamaram Rus às terras de Kiev porque eram todos ruços, como vikings que se prezam. Se não fossem eles não havia Ucrânia, logo nunca teria havido esta guerra.
Trump não concorda comigo e acha que foi Zelensky que começou a guerra. A princípio não acreditei em tal disparate mas é verdade, o vídeo não engana. Putin deve-se ter rebolado de gozo.
CITAÇÃO
“Numa época tão doente como esta, quem se ufana de aplicar ao serviço da sociedade uma virtude genuína e pura, ou não sabe o que ela é, já que as opiniões se corrompem com os costumes (de facto, ouvi-os retratarem-na, ouvi a maior parte glorificar-se do seu comportamento e formular as suas regras: em vez de retratarem a virtude, retratam a pura injustiça e o vício, e apresentam-na assim falsificada para educação dos príncipes), ou, se o sabe, ufana-se erradamente e, diga o que disser, faz mil coisas que a sua consciência reprova.”
Afinal não é só hoje. Já Montaigne escrevia isto, nos Ensaios, livro III, cap. 9, “Da vanidade” (1595).
MOMENTO DE RISO
Trump — Vou mandar astronautas ao Sol.
X — Não pode! Vão ficar todos queimados.
Trump — E se os mandar à noite?
EVOCAÇÕES AÇORIANAS
Cozinha tradicional – polvo guisado
Um amigo recordou-me que eu ainda não tinha cumprido a minha promessa de dar algumas receitas de cozinha açoriana. Provavelmente, não o fiz nestes exatos termos, porque é difícil falar de cozinha açoriana. A sopa de nabos de Santa Maria, a fava rica ou o molho de fígado de S. Miguel, a alcatra terceirense, a caçoila de S. Jorge, o molho de ferrado do Pico ou a molha de carne do Faial e do Pico são pratos distintivos de cada ilha, desconhecidos nas outras. Vou escolher hoje um dos que são comuns a todas as ilhas e permitem falar-se de uma cozinha açoriana, em geral – o polo o guisado em vinho. Vou dar a versão mnicaelense, mas que não difere significativamente das de outras ilhas.
As minhas receitas açorianas são geralmente versões enriquecidas, urbanas e burguesas, da cozinha popular. Vêm das famílias das minhas avós, uma micaelense e outra terceirense, com grandes pergaminhos culinários. Noutros casos, de recolhas que fui fazendo. Mas muitas vezes seguia-se a tradição genuinamente popular ou até se mandava vir da taberna. Vamos então ao polvo, segundo a Piedade, grande cozinheira em casa da minha avó paterna, em S. Miguel.
Ingredientes:
1 polvo, cerca de 2 kg, 1,5 dl de óleo [1], 3 cebolas, 3 dentes de alho, 1 folha de louro, 1 raminho de salsa, pimenta preta, sal, 4 cravinhos, malagueta a gosto (cerca de 1 cs de massa de malagueta [2]), vinho tinto [3], cerca de 5 dl
Preparação:
Bater vigorosamente o polvo com um rolo de massa. Em alternativa, congelar e descongelar, como eu faço, ou estendê-lo de um fio, pelo capelo. Este passo não é necessário se se usar polvo congelado.
Refogar em metade azeite e metade óleo as cebolas picadas, o alho picado, a folha de louro atada com a salsa. Sem a cebola estar completamente alourada, juntar o polvo, cortado aos pedaços pequenos. Temperar e deixar ferver até reduzir a metade a água largada pelo polvo [4].
Cobrir com o vinho e cozer muito tempo, a lume médio-baixo, com o tacho um pouco destapado, até o molho estar bem apurado. Em média, demora 45 minutos. Na última 1/2 hora de cozedura pode-se ter que ir juntando um pouco de água (nunca mais vinho!) e mexer com frequência, tendo cuidado com a tendência para o polvo pegar ao fundo.
Como em muitos outros pratos dos Açores, o acompanhamento é só pão, a embeber no molho, mas há quem acompanhe o povo com batata cozida, feita à parte ou acabando de cozer junto com o polvo.
[1] As gorduras de cozinhar nos Açores são a manteiga, a banha e o óleo. Tendo de ser importado, o azeite é caro e só se usa para temperar.
[2] A malagueta de S. Miguel é uma malagueta grande e achatada, com cerca de 10 cm, moderadamente picante e com sabor característico. Pode ser comprada na Mercearia dos Açores (Rua de S. Julião, Lisboa) ou no supermercado do Corte Inglês. Se não se quiser dar a esse trabalho, pode omiti-la da receita e não deixa de ficar “à açoriana”, porque a malagueta é característica só mãe S. Miguel.
[3] A maior parte do vinho usado na cozinha nos Açores é o vinho de cheiro, de uva Isabel, americana, trazida depois de a filoxera ter dizimado a vinha açoriana, principalmente de vermelho, hoje em recuperação. O vinho soe cheiro não é comercializado no continente e pode ser substituído por vinho verde tinto. No entanto, prefiro um tinto encorpado. Não é o tradicional mas o prato fica melhor.
[4] Só no caso de se usar polvo congelado, que deita muita água. Se polvo fresco, pode-se juntar logo o vinho ao polvo com o refogado. Em alternativa, para eliminar o excesso de água e o molho final não ficar pouco apurado, pode-se começar por pré-cozê-lo parcialmente em panela de pressão, sem água, rejeitando-se a água largada pelo polvo. Não é o procedimento tradicional e corre-se o risco de no fim o polvo estar cozido de mais, o que o endurece.
MÚSICA EM VÍDEO
Continuando a navegar em águas açorianos, vou dar um exemplo muito conhecido do cancioneiro popular açoriano, muito abundante e de grande qualidade musical. Os Olhos Negros têm origem na Terceira mas já no meu tempo eram cantados por toda a parte e usados no canto coral das escolas de todas as ilhas. É possivelmente uma composição de autor erudito, desconhecido, mas pode ser considerada como popular, por o povo a ter adotado como sua.
O CARTOON DO DIA
Este cartoon de Zez Vaz está a ter muito sucesso na imprensa americana. Evoca a célebre fotografia do homem que desafia os tanques na praça de Tiananmen, sendo aqui os tanques substituídos por Cybertrucks, da Tesla de Elon Musk.
Um excelente ensaio, como sempre. Só com um reparo: parece-me injusto colocar o Diogo Faro nessa lista. Mesmo que possamos discordar da forma como tenta fazer o seu ativismo, é certo que se trata de um dos poucos que, à esquerda, tenta ocupar esse espaço de disputa.