#15 – No Moleskine, “Europa 2025” e “Depois de Moçambique, Angola?”, mais as secções habituais
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“The last thing authoritarians want is citizens who think for themselves, who think critically about social values and speak truth to power. This is the reason why higher education is under such pressure from the political right today.”
(“A última coisa que os autoritários querem são cidadãos que pensem por si próprios, que tenham um pensamento crítico sobre os valores sociais e que falem verdade ao poder. É por esta razão que o ensino superior está atualmente sob tanta pressão da direita política”) – Jack Newell, Professor Emeritus, University of Utah (recolhido por John Costa, da mesma universidade)
BREVÍSSIMA
Antes de 1990, parecia que o acontecimento ou processo mais importante do século XX, a deixar as maiores marcas na História, era a Revolução de Outubro. Lembrando-nos da máxima romana (via gauleses) “vae victis” (ai dos vencidos), escolhamos a segunda: a descolonização. utobro. Queda anulou papel histórico. Passa a ser descolonização
A ABRIR
Muito se repete, em favor do centrismo, a pretensa regra da ferradura, de que os extremos se tocam. É certo que muitas vezes há aparente concordância entre os extremos, mas por duas razões, separadamente ou em conjunto. Ou porque os extremos não são verdadeiramente extremos antagónicos, com coerência; ou porque a concordância na conclusão tem por detrás premissas diferentes, por diferentes fundamentos, princípios e valores.
Isto tem um perigo prático. Para evitar confusões, um dos extremos, geralmente o mais consciente e responsável, abdica do combate ou mesmo da mera crítica para não ser conotado com o seu adversário “do outro extremo”.
Li há dias num blogue: “a liberdade subtraída pelos wokes, a ditadura do "politicamente correcto", o modo habilidoso de acabar com a nossa cultura”. Nada de mal, tenho escrito o mesmo, embora não de forma tão simplista. Sewreá que o autor me é ideologicamente próximo? Leia-se o que vem a seguir: “Queremos poder continuar a gostar de caça, toiros, pesca, cavalos, corridas de galgos e quejandos; e não queremos esta opressão das palavras bem medidas sob pena de sermos acusados de homófobos, xenófobos, anti-ambientalistas, de sermos vítimas dessa nova fobia urbana e das manobras experimentalistas com que a Esquerda vai dando cabo da cidadania.” Sem comentários!
Em vários pontos da Europa, está a emergir uma esquerda que não tem medo da apropriação fraudulenta das suas posições pela ultradireita, uma esquerda não enquistada nas causas isolacionistas na moda, fragmentárias e que não dão resposta ao crescente descontentamento social. Por ora, os defensores dessa novas esquerda ainda são combatidos pela esquerda chique, que os chama pejorativamente de vermelhos-castanhos, mas, como com tantas outras coisas, o pós-modernismo político veio e ir-se-á, mais cedo ou mais tarde.
NO MOLESKINE – NOTAS POLÍTICAS
1. Europa 2025
Este novo ano promete muita turbulência, senão mesmo uma tempestade de crise, de vários níveis e tipos: económica, política, de relações internacionais. Os mais fortes, bem amarrados a qualquer apoio, resistirão melhor ou pior, mas a velha Europa, carcomida pelo seu reumático, aparentemente já incapaz de algum sopro de ânimo, corre graves riscos.
Os tempos estão negros e há uma multiplicidade de fatores a interagirem cujo efeito é imprevisível, em termos ide configuração do que parece inevitável, o acentuar da crise, especialmente na Europa. O nosso continente está aprisionado numa armadilha, como resultado do agravamento, desde a invasão da Ucrânia, da tendência para a subordinação política, para a irrelevância no tabuleiro do jogo das forças internacionais e para o desguarnecimento das condições económicas que poderiam mitigar as tendências negativas.
Até numa questão em que a Europa desempenhou frequentemente um papel positivo, a da luta do povo palestiniano contra o regime sionista de Israel, a evolução da política externa da União Europeia e da Grã-Bretanha tem tido uma inflexão negativa, com maior seguidismo em relação aos EUA e repressão das manifestações de apoio à causa palestiniana, a pretexto falso de anti-semitismo.
O fim da guerra fria deu a muitos a esperança de um verdadeiro desanuviamento. Embora com ambiguidades, com avanços e recuos, a conferência de Helsínquia tinha aberto um caminho possível para uma nova era de paz, segurança e cooperação na Europa, que seria ainda mais viável pela nova política da URSS, com Gorbatchov. Em 1991, a assinatura do tratado START sobre a redução de armas estratégicas teve como pressuposto a garantia dada por Bush pai de que a NATO não se expandiria para Leste e que não integraria os países anteriormente membros do Pacto de Varsóvia. Esta promessa foi completamente traída, provocando um processo de enquistamento defensivo e nacionalista da Rússia de Putin. Ao contrário dos EUA, isolados de potenciais invasores por dois oceanos, a Rússia sempre deu primazia à defesa territorial de vizinhança, valorizando mais a força militar nas fronteiras do que a projeção de forças à distância.
A partir de 2014 e dos levantamentos da Praça Maidan, em Kiev, essa preocupação russa foi sistematicamente posta em cheque pela política da Ucrânia, instigada em parte pelas potências ocidentais e pela NATO. Isto não absolve a Rússia da sua violação do direito internacional, ao invadir a Ucrânia, mas não pode ser esquecido em termos de condicionalismo para a paz e a redução do clima de nova guerra fria em que vivemos. Ao longo da História, a Rússia sempre oscilou entre a aproximação à Europa central e ocidental, como nos tempos de Pedro o Grande e de Catarina II, e o isolamento, com os olhos postos na “Eurásia”. Desde a invasão da Ucrânia, a União Europeia passou a diabolizar a Rússia e provocando um dos mais fortes dos tais movimentos pendulares, isolacionista; ou melhor, de constituição de um novo bloco alternativo, com grande peso do eixo Moscovo-Pequim.
As sanções à Rússia, a perda de uma fonte barata de energia e a ajuda material e financeira à Ucrânia tiveram e continuam a ter – ou a aumentar, como se verá adiante – um enorme custo económico. Se, a princípio, a utilização concertada da comunicação social criou uma opinião pública europeia largamente favorável à Ucrânia, sondagens mais recentes indicam haver hoje um significativo cansaço da guerra e rejeição do seu prolongamento, considerando-se como ilusão a tese de uma vitória militar total e definitiva da Ucrânia e, por extensão, do Ocidente.
E não é só na Ucrânia que se joga o combate. Tensões e movimentos, de parte a parte, tendem a fazer eclodir noutros pontos do mapa europeu novos focos de tensão, nomeadamente na Geórgia, na Moldóvia e na Roménia. Até a situação política na Turquia pode trazer surpresas, quer pela sua aproximação aos BRICS quer pela incerteza da evolução da situação na Síria, em que a Turquia está profundamente envolvida.
Este esforço económico agrava um quadro geral já de si preocupante, nos domínios político e económico. O eixo europeu, franco-alemão, conhece grandes dificuldades, com a crise da indústria alemã, especialmente do sector automóvel, a incerteza das próximas eleições, a instabilidade tripolar e conflitual da política francesa e a situação das finanças públicas e da dívida. Isto culmina, para já, uma evolução europeia negativa, de baixo crescimento, de desinvestimento, de desindustrialização (com concentração em sectores estreitos, como o automóvel) e de desvio da economia para os serviços e a finança. Tudo isto com um grande desafio demográfico, numa sociedade envelhecida e crescentemente incapaz de facultar às camadas mais velhas o apoio necessário na reforma e na saúde, bem como de integrar harmoniosamente as populações jovens imigrantes.
Em termos de longo alcance, a Europa está hoje em pior posição do que os seus concorrentes numa área determinante, a da investigação e inovação no digital, em particular na inteligência artificial, não parecendo também que possa competir no que respeita à disponibilidade das bases para essa atividade, nomeadamente a energia necessária e o armazenamento de bases de dados gigantescas.
A chegada de Trump à Casa Branca vai reforçar as tensões que ameaçam eclodir como crise. É conhecida a sua intenção de reduzir ou mesmo anular o apoio à Ucrânia, promovendo uma solução negociada para o fim da guerra. A ser assim, não se pode excluir que a Europa, se mantiver o seu mantra de vitória obrigatória na Ucrânia como garantia de segurança contra o “perigo russo”, venha a aumentar o seu próprio apoio, com os custos que isso acarreta para a sua já preocupante situação económica.
Ainda há pouco tempo, o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, numa entrevista ao Financial Times, avisava Trump de uma “terrível ameaça” para os EUA, se a Ucrânia for forçada a um mau acordo de paz. Este belicismo europeu é paradoxal, na medida em que, ao mesmo tempo, a Europa ocidental e central se desguarneceu militarmente, ao enviar para a Ucrânia parte considerável dos seus arsenais. E também porque o seu maior maior constrangimento económico, o preço dos combustíveis, está diretamente relacionado com a guerra, por interrupção do fornecimento do gás natural russo.
(Abrindo parênteses, note-se que a declarada intenção de Trump de promover o fim da guerra é a razão para o entusiasmo com que a sua eleição foi celebrada por alguns sectores de esquerda esquemática e de tendência geopolítica. Fica por se entender é como é que esse apoio a Trump esquece o seu forte e incondicional apoio aos criminosos do governo israelita, também manifestado nas escolhas fascistas e ultrassionistas que fez do seu “staff” para as relações com Israel).
A outra intenção anunciada de Trump com grande impacto na União Europeia é a adoção de uma política protecionista, com fixação de tarifas aduaneiras pesadas – diz-se que até 20% – para as importações americanas. Esta guerra comercial tem como principal alvo a China – que certamente retaliará – mas a Europa, mais frágil e dependente, sofrerá as consequências mais pesadas, esmagada entre os dois colossos.
Quem diz Europa, diz principalmente Alemanha, o motor principal da economia europeia. Ora é exatamente na Alemanha que se veem hoje os sinais mais preocupantes da ameaça de uma crise. Pense-se o que se pensar da Alemanha, lembre-se ou não o seu passado tenebroso do nazismo – diga-se, em boa justiça, que sinceramente condenado por muita gente de gerações posteriores de alemães – tem de se aceitar objetivamente este papel da Alemanha. Alguns até vão tão longe como George Soros, ao defender que deve ser atribuído à Alemanha um papel de “hegemon benévolo”.
Um artigo recente na Bloomberg defende que é do interesse dos EUA estabilizar a economia europeia, que está próxima da queda livre, com o fator crucial da disponibilidade e custos da energia, principalmente o gás natural. Propõe a reentrada em serviço da parte do Nord Stream não danificada e o trânsito normal anterior de gás pela Ucrânia. Os EUA, depois da II Guerra Mundial, não cometeram o erro do tratado de Versalhes. Seria bom que também o tivessem presente nesta época crítica para a Europa.
Tenha-se em conta, todavia, que a situação no campo trumpista não é clara e encerra contradições importantes, As conceções político-económicas de Trump e de Elon Musk são opostas em muitos aspetos fulcrais e dizem respeito a interesses vitais de Musk, nomeadamente as relações com a China, a economia dos combustíveis fósseis e a primazia do transporte em veículos elétricos. A ver vamos, como lidarão uma com a outra essas duas tão exacerbadas personalidades psicopáticas.
Finalmente, “last but not the least”, a vitória de Trump não tem para a Europa apenas consequências políticas e económicas; também, e muito importantes, as ideológicas. Quando a ascensão da ultradireita é um dos fenómenos mais preocupantes da situação política europeia, a eleição como dirigente mais poderoso do mundo de um protofascista egomaníaco não pode deixar de ser um alento à ultradireita de todo o mundo, como se tinha visto no primeiro mandato quanto às relações entre Trump e Bolsonaro. Para já, vamos observar as relações entre Trump e Javier Milei.
Em situações pantanosas, de crise prolongada sem perspetivas de solução, alastra um descontentamento difuso que é terreno para todas as aventuras – ou desventuras – políticas e sociais. São tempos de interregno (à Gramsci) em que aparecem todos os sintomas mórbidos. O descontentamento geral alimenta a ultradireita, sem que grande parte da esquerda tradicional lhe dê uma alternativa. Nuns casos, por compromisso com a política neoliberal que está na origem do descontentamento. Noutros porque alguns setores de esquerda se divorciaram das massas populares, privilegiando ideias e atuações elitistas e individualistas, que também chocam e afastam as pessoas de bom senso. Uma crise política e económica na Europa é a porta aberta à “besta” e só uma esquerda consequente, uma esquerda a ser reinventada com urgência, é que poderá dar resposta ao descontentamento geral e parar a marcha para o abismo.
2. Depois de Moçambique, Angola?
Com exceção do paraíso africano de Cabo Verde, o conjunto das antigas colónias portuguesas de África mostra sinais de grande instabilidade, mesmo quando os regimes parecem seguros, como em Angola. A Guiné-Bissau parece um caso perdido, a cair para narco-estado e Estado falhado. S. Tomé e Príncipe, estagnado, é palco de sucessivos episódios insurrecionais mais ou menos rocambolescos. Moçambique acaba de “explodir”, agravando uma situação já anteriormente perigosa, com a presença do Daesh no Norte. Angola, mau grado a aparente robustez do regime e o funcionamento minimamente regular da administração, acumula descontentamentos que são tão mais compreensíveis quanto o povo tem consciência do enorme desfasamento entre as riquezas do país e a situação social e económica das massas populares. Depois de Moçambique, virá o incêndio de Angola?
A descolonização portuguesa foi tão tardia que as condições gerais do quadro político e económico internacional já foram muito diferentes da descolonização dos outros impérios. Veremos isto, sinteticamente, já adiante. Por outro lado, uma guerra colonial prolongada não podia deixar de marcar com especificidade a descolonização portuguesa, quer da parte dos colonizados, cujas relações com os colonos e o poder certamente foram afetados pela hostilidade da guerra, quer da parte do colonizador e das suas responsabilidades pelo legado na altura da independência.
Esse legado tem aspetos contraditórios derivados da guerra. Por um lado, a fraqueza económica portuguesa, aliada ao esforço de guerra, eram contrários ao desenvolvimento das colónias. Por outro lado, era conveniente apresentar ao mundo e também a alguns estratos, assimilados, da população colonial que Portugal cuidava do desenvolvimento e bem-estar dos africanos “tão portugueses como os minhotos”, que lhes dava “igual” educação, inclusive universitária, hospitais, infra-estruturas.
O deve e haver económico da colonização e da descolonização é difícil de apurar e nem é o mais importante face a um dos mais elementar direitos, o direito à independência e soberania dos povos. De qualquer forma, já cinquenta anos após a descolonização, não é fácil determinar, em relação às dificuldades atuais, o que é ainda efeito negativo direto do colonialismo e o que são erros já imputáveis aos governos independentes.
A minha hipótese principal de trabalho é de que a situação pós-colonial é expressão da contradição entre um sistema económico-social que prolonga o da colonização e um nível de desenvolvimento e acumulação de riqueza e forças produtivas e de capacidades humanas exigido por esse sistema económico. Afinal, a velha contradição entre as relações de produção e as forças produtivas, questão teórica e prática que fez correr muita tinta sobre a possibilidade de uma revolução socialista num país atrasado como a Rússia de 1917 e que gerou o célebre mote de Lenine, no VIII Congresso dos Sovietes (1920): “o comunismo é o poder dos sovietes e a eletrificação de todo o país”.
Para esse processo, um aspeto determinante, que referi atrás, foi o desfasamento temporal da nossa descolonização, num quadro mundial muito diferente. As descolonizações dos anos 60 ocorreram durante a coexistência dos dois sistemas antagónicos, capitalista e socialista, o que determinou algum grau de escolha na estratégia de desenvolvimento e de organização social e económica.
Alguns dos novos países, como o Gana, a Guiné, o Congo de Mobutu e, claro, já antes, os indochineses, adotaram projetos socialistas ou socializantes, hoje quase desaparecidos. Muitos outros mantiveram a lógica capitalista mas, com exceção do caso particular de “descolonização” dos grandes domínios ingleses, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, os novos países não copiaram exatamente o capitalismo colonial herdado. O modo capitalista tingiu-se de tonalidades políticas - e, em menor grau, económicas – marcadas por um espírito anti-imperialista e oposto à continuação da exploração por via do neocolonialismo.
Esta corrente terceiro-mundista, ou não-alinhada, integrou também alguns países já anteriormente independentes, como a Indonésia, a Índia de Nehru ou os países árabes progressistas e teve apoio, na Europa, de um único país, a Jugoslávia, que não pertencia a nenhuma das duas grandes alianças político-militares.
O movimento dos não-alinhados ainda era forte à data da nossa descolonização e até também tinha influência em alguns dos militares de Abril. Os novos governos tiveram uma tónica acentuadamente progressista, socializante, a que não era alheia a formação marxista e revolucionária da maior parte dos dirigentes dos movimentos de libertação e mesmo, em alguns casos, a ligação anterior ao PCP.
Com a queda do sistema socialista, o triunfo do capitalismo tido quase como inevitável, até mesmo como “fim da História”, determinou a interrupção do processo socializante e o alinhamento com o sistema capitalista quase mundial. As nacionalizações das grandes empresas nacionais foram em boa parte revertidas e, como na Rússia pós-soviética, a pretexto do preenchimento de uma condição económica essencial, ironicamente de raiz marxista, isto é, a fase de acumulação primitiva do capital. De certa forma, o que também aconteceu na China de Deng Xiaoping e o seu mote “enriquecer é glorioso”.
A questão é que essa acumulação e a concomitante criação de uma burguesia nacional foi feita aceleradamente e de forma artificial. Não correspondeu ao desenvolvimento natural e prévio de uma classe social mas sim à apropriação por uma “classe” política, dos dirigentes anteriormente defensores de uma ideologia anticapitalista. Isto ainda se acentuou mais quando os vencidos das duas guerras civis, de Angola e Moçambique, foram neutralizados por assimilação ao sistema oficioso de enriquecimento, em particular dos militares de alta patente.
Os movimentos de libertação converteram-se em partidos políticos de gestão dos interesses privados da elite política, de compromisso entre os diversos grupos militares, étnicos ou clientelistas da elite. Os restantes partidos entretanto criados não se distinguem claramente em termos ideológicos ou programáticos e estão divorciados das massas populares. Veja-se, por exemplo, que Venâncio Mondlane, vindo da Renamo – uma criação dos serviços secretos da Rodésia de Ian Smith –, é agora apoiado pelo Podemos (acrónimo do nome bizarro do Partido Otimista!), um partido dissidente da Frelimo, que se diz social-democrata e que foi constituído a partir de setores juvenis da Frelimo, em torno do filho de Samora Machel.
A corrupção é generalizada, a ajuda internacional é muitas vezes desviada, a administração é ineficaz e impune. O povo, principalmente o dos centros urbanos, vive mal mas assiste à ostentação de riqueza da elite, à exibição dos artigos de luxo comprados nas lojas lisboetas da Avenida da Liberdade. A oposição intelectual e cultural é abafada e os meios mais importantes da comunicação social estão controlados.
Alguém se admira de que esta situação seja uma bomba relógio a que só falta regular a hora da detonação? E que haja tumultos violentos, incontrolados, por parte de gente enraivecida mas sem possibilidade de expressão organizada e responsável, como agora em Moçambique?
* * * * *
Uma nota final para um aspeto político que me parece que tem sido pouco focado: até que ponto a situação moçambicana reflete um movimento internacional de tomada de poder político por parte do movimento evangélico?
Venâncio Mondlane destaca-se, à primeira vista, como político com notoriedade pública conseguida principalmente na comunicação social. Mas é também pastor evangélico, coisa que, aliás, ele próprio não salienta muito nas suas notas biográficas. O seu estilo oratório e comunicativo é claramente aquele que bem se observa nos vídeos de reuniões evangélicas, como os da IURD portuguesa e mais exuberantemente nas muitas igrejas brasileiras.
Igrejas brasileiras, de um Brasil em que elas foram e são ainda uma força poderosa no conjunto do bolsonarismo, assim como as mesmas igrejas, nos EUA, como o demais movimento fundamentalista cristão, apoiam militantemente Donald Trump. Agora, elas aparecem em força também no outro lado do mundo, apoiando o presidente golpista da Coreia do Sul.
Pelos discursos de Venâncio Mondlane, pela sua atividade política como autarca e deputado da Renamo, pouco se fica a saber sobre a sua ideologia e não posso garantir que, como evangélico, alinhe com as posições neofascistas do movimento. Mas o que vejo dele é um discurso populista primário, de instrumentalização do justo descontentamento em relação ao poder estabelecido, mas sem fornecer qualquer alternativa programática ou propostas objetivas. É um discurso comum a todas as variantes do fascismo dos tempos atuais que vemos eclodirem por todo o mundo.
TRÍVIA
1.
“Apenas 22% dos alunos que concluíram um curso profissional seguiram para o superior” (Público). Pudera! Certamente que, em percentagem, muito menos alunos do secundário no Conservatório seguiram para Agronomia ou muito menos alunos dos seminários católicos seguiram para engenharia. Grande jornalismo, que desconhece coisas tão elementares como a natureza e objetivos do ensino vocacional.
E, por falar em jornais, mais um mimo: “Potenciais dívidas são valores insignificantes num orçamento anual do SNS de 15,8 milhões de euros”. E a minha reforma cabe nos dedos de uma mão, em euros. É tudo coisa irrelevante, de diferença de escala na ordem do milhar. Se os tivesse, eu trocaria os tais 15,8 milhões pelo valor real do orçamento: 15,8 mil milhões. O erro não se fica por aqui: são 16,8 e não 15,8; e trata-se do orçamento de todo o setor público da Saúde e não apenas do SNS.
2.
Outro título: “Violência doméstica: mulher detida no Porto por agredir marido”. Infelizmente, a violência doméstica do homem sobre a mulher ainda é tão frequente que não é notícia. Pelos vistos, o contrário ainda é. È o dito célebre: notícia não é um cão morder um homem: notícia é um homem morder um cão”.
3.
Hélder Rosalino já não vai ser secretário-geral do Governo. Estava a ganhar cerca de 16 mil por mês, e teria de receber menos do que o vencimento do primeiro ministro, cerca de 5800 euros, acrescidos de subsídio de representação. É um valor absurdo, em termos do nosso mercado de trabalho, quase significando que os nossos dirigentes são forçosamente os medíocres que não conseguem um bom emprego na atividade privada. E é um valor que representa pouco mais do que quatro vezes o salário médio, num leque salarial muito estreito e pouco condizente com a lógica de mercado do sistema capitalista. Reduzir o leque fazia todo o sentido no quadro da construção do nosso socialismo pós-25 de Abril, mas hoje é anacrónico, mesmo como redução da desigualdade. A desigualdade vem dos rendimentos de capital, não dos salários.
No entanto, a questão é tabu, receando os políticos que decidir em causa própria os penalize e beneficie os populistas de ultradireita. Estão a esquecer interesses da própria democracia. Pagar satisfatoriamente aos políticos e a outros detentores de poder, como juízes e militares, é um meio importante para combater a corrupção e o funcionamento das portas giratórias entre a política e as empresas.
4.
“Se Henrique Gouveia e Melo chegar a Presidente da República, será um chefe de Estado parecido com Jorge Sampaio. Quem o diz é José Manuel Anes, antigo grão-mestre da Maçonaria Regular, e um dos impulsionadores do Movimento de Apoio Almirante à Presidência, uma associação que está a ser constituída com o intuito de apoiar uma eventual candidatura presidencial do antigo chefe do Estado-Maior da Armada” (Público).
Sobre política o almirante não se descose, mas há quem o veja como Jorge Sampaio. Não sabem a inveja que eu tenho dos dotes divinatórios de algumas pessoas…
EFEMÉRIDES, 4 DE JANEIRO
1643 – Nascimento de Isaac Newton, um dos maiores génios da História da humanidade. Todos conhecem a sua descoberta das leis da gravidade mas não menos importante, para todas as ciências, foi a sua invenção do cálculo infinitesimal (também, independentemente, por Leibnitz).
1884 – Fundação da Sociedade Fabiana, a mais antiga organização socialista inglesa e, posteriormente, a base da criação, com os sindicatos, do Partido Trabalhista.
1959 – A sonda soviética Luna 1 torna-se o primeiro objeto a chegar próximo da Lua, a 6000 km de distância, enviando para a Terra as imagens mais pormenorizadas até então conseguidas da superfície lunar.
GOSTEI…
Muito, mesmo muito, de Wicked. É um filme com uma aposta muito bem conseguida de jogo no fio da navalha, entre o “kitsch” e o encantamento. Afinal, esse “kitch”, muito bem enquadrado e a piscar o olho ao espectador, é essencial para o encantamento. É uma história para adultos contada numa linguagem para crianças.
Realização, interpretação, música, fotografia e direção artística de alto nível. E, sendo uma fantasia, um musical, tem mensagens importantes. Veja-se esta do feiticeiro de Oz: “a forma mais eficaz de controlar as pessoas, unindo-as, é fornecer-lhes um inimigo”.
NA COZINHA
Na cozinha tradicional micaelense – mas não nas outras ilhas – tem lugar importante uma mistura de condimentos popularmente chamada de “temperos”. Não sei se perceberão pela seguinte ortografia como se diz lá: tôdolos tamparos. Usa-se para muitas coisas, tão variadas como os torresmos, a carne guisada, o molho de fígado ou a fava rica (em vias de extinção, por já ninguém querer secar fava). É tão vulgar mas tão importante que, nas freguesias – em S. Miguel há a cidade e fora da cidade, das freguesias, porque aldeia é termo desconhecido – chegava a ser usada como moeda, para o troco das compras na mercearia.
Normalmente, não se preparava em casa, adquirindo-se o preparado nos grandes armazéns grossistas de comes e bebes, cada um com a sua mistura própria e mantida em segredo. A receita que tenho, e que se segue, foi-me facultada pelo Armazém Domingos Dias Machado:
2,5 c. sopa de colorau, 2,5 c. sopa de erva doce, 1/2 c. sopa de canela, 1 c. chá de pimenta preta, 1 c. chá de cravinho, 1 c. chá de cominhos
tudo bem moído, em mistura, num moinho de especiarias ou, na falta, num moinho de café ou mesmo na Bimby a velocidade 7-9.
Experimentem fazer um caril, tudo segundo a vossa receita para um caril de vaca, porco ou galinha, mas substituindo o pó de caril por este tempero micaelense.
O QUADRO DA SEMANA
A galeria dos retratos no Palácio de Belém mostra os retratos pintados a óleo de todos os presidentes da República. Há para todos os gostos. Excelentes, claro, os de Arriaga, Teófilo e Teixeira Gomes, por Columbano. Os retratos dos presidentes do Estado Novo são de Henrique Medina e de Eduardo Malta e mostram a maestria técnica dos dois retratistas, mas, a meu ver – que não sou crítico de arte, mas não deixo de ter opinião mesmo que de leigo – sem adiantarem nada em relação a boas fotografias, principalmente os de Malta.
Seguem-se os que, para mim, são os exemplares mais infelizes, os dos dois marechais, Spínola e Costa Gomes, principalmente porque não captaram fielmente a expressão dos retratados. O retrato de Eanes, por um retratista na moda, Luís Pinto Coelho, é também fotográfico, mas desta vez com boa expressão e com um tratamento conseguido dos tons da quase monocromia azul.
Depois, dois quadros de que não gosto: o de Jorge Sampaio, retratado por Paula Rego, de cuja obra não sou grande admirador e que dá ao retrato alguma coisa de caricatural, de disforme, quase acondroplásico; e o de Cavaco (dir-se.-ia que cada um tem o retrato que merece), uma coisa banal e pomposa (o único com bandeira e livros bem encadernados) pintada por Barahona Possolo.
Deixo para o fim o que, para mim, é o mais notável exemplar da galeria dos retratos, o de Mário Soares, pintado por Júlio Pomar. O estilo, característico de Pomar da última fase, é único naquela coleção, bem como as cores a fugir do naturalismo e uma evidente rejeição de qualquer pompa e circunstância desse tipo de pintura, até com alguma informalidade, por exemplo no vestuário. Repare-se também no pormenor da cabeça de leão do braço da cadeira, que tinha sido usada por Columbano nos retratos de Manuel de Arriaga e de Teixeira Gomes.
A face é do Soares que todos conhecemos, com um sorriso rasgado que exprime a mistura de bonomia e determinação de Soares. Mas são as mãos, gesticulando de forma quase cinética, que nos transmitem melhor o temperamento de Mário Soares.
A RETER: O florescer dos cogumelos (ou ninhos de serpente?) evangélicos.